sábado, 7 de maio de 2011

A Acção Popular

A acção popular, como abordaremos adiante com mais detalhe, por constituir uma garantia constitucional, é um verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um interesse pessoal e directo, o acesso aos tribunais visando a defesa de certos interesses de toda uma comunidade. É por constituir uma natureza quase altruísta que, chocando com a postura egoísta dos direitos subjectivos, a acção popular se revela como um instituto de particular interesse.
Como postula o Prof. Doutor Paulo Otero, podemos demarcar seis momentos diferentes na História sobre a origem e evolução do instituto da acção popular no Direito português:
1. Numa primeira fase, constatamos que a acção popular encontra no Direito Romano as suas origens. De acordo com Lingnau Silveira, um dos primeiros exemplos da sua utilização terá sido a acção popular movida por Meletos contra Sócrates. Mais tarde, é possível verificar que este mesmo instituto gozava de consagração nas Ordenações do Reino. Aí, embora fosse dada particular importância à acção popular no âmbito penal, havia o reconhecimento expresso da sua aplicabilidade na defesa dos bens dos concelhos;
2. Com a Carta Constitucional de 1826, a acção popular conheceu a sua primeira referência num texto constitucional. Ainda que circunscrita a alguns crimes praticados por juízes, o artigo 124.º da Carta Constitucional previa este instituto;
3. Foi ao abrigo da Carta Constitucional que o Código Administrativo de 1842 consagrou a acção popular, sendo a primeira vez que tal acontecia. O instituto então consagrado na legislação administrativa era de natureza correctiva, ou seja, visava o controlo da legalidade de certos actos da Administração, sendo que este controlo era num primeiro momento limitado a matéria eleitoral, sendo depois alargado a outros actos da Administração local que se tivessem como contrários ao interesse público e à lei;
4. Trinta e seis anos depois, com o Código Administrativo de 1878, a acção popular passou a ter uma natureza supletiva, isto é, visava apenas suprir as omissões dos órgãos públicos locais quando tal se revelasse necessário face a um ataque aos bens e direitos da Administração. Por outro lado é possível referir que esta mesma figura tem sido desde então uma constante em toda a legislação administrativa de âmbito local;
5. Forjada no período pós-revolução 25 de Abril de 1974, a Constituição de 1976 reconheceu de forma inequívoca o direito fundamental de acção popular, inserindo-a no âmbito dos direitos, liberdades e garantias de participação política. As posteriores revisões constitucionais acarretaram mudanças significativas, principalmente por alargarem as modalidades da acção popular;
6. Com a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto a acção popular passa a ter o necessário desenvolvimento legislativo que se impunha. Esta lei teve como base os projectos de lei nº 21/VI, do Partido Comunista Português e nº 41/VI, do Partido Socialista, e veio regulamentar o direito de participação procedimental e de acção popular.
Em Portugal a acção popular é vista como um direito fundamental de acesso aos tribunais (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa). Esse direito é-o para os membros de uma “certa comunidade”, não sendo possível a apropriação individual do mesmo (falamos por isso de interesses difusos). Deste modo, concluímos que o autor popular nunca age em seu nome, mas antes em nome da colectividade ou comunidade a que pertence. Encontra-se prevista no artigo 52º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe da seguinte forma:
É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos
interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das
autarquias locais.

A acção popular nos termos da legislação portuguesa não constitui um meio processual per si, mas antes uma forma de alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos. Por não ser uma acção em sentido técnico, não comporta qualquer mecanismo útil para a prevenção, cessação ou perseguição judicial do interesse a que se destina. Teixeira de Sousa defende, por isso, que a tutela dos interesses difusos pela acção popular dá-se de forma concreta e abstracta, uma vez que compreende qualquer meio de tutela admissível na área civil e administrativa.
Cabe ainda referir que o art. 9º, nº 2 do CPTA constitui um dos momentos objectivistas de um contencioso administrativo tendencialmente subjectivista, muito à semelhança do modelo de justiça administrativa alemã.
Têm sido vários os autores nacionais a tentar delimitar o conceito de acção
Popular:
Robin de Andrade descreve o instituto como as acções cujas partes legítimas
serão todos os indivíduos que, incluídos no populus, apresentaram como título da sua legitimidade um mero interesse genérico derivado da sua pertença à colectividade política.
O Professor Paulo Otero, por sua vez, defende que a acção popular trata-se
de um verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um
interesse pessoal e directo o acesso aos tribunais, com o propósito de defender interesses da colectividade.
Marques Antunes escreveu também sobre o tema, descrevendo a acção popular como um direito atribuído a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos ou a pessoas colectivas. Este direito permite requerer que os órgãos jurisdicionais do Estado intervenham com o propósito de salvaguardar a tutela de certos interesses comunitários aos quais a Constituição portuguesa garante uma protecção qualificada, assim como requerer a reparação de danos que lhe hajam sido causados.
Por fim, cabe referir a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, que refere a acção popular como um alargamento da legitimidade processual e procedimental, tornando sujeitos indivíduos e pessoas colectivas que não possuem um interesse directo na demanda.
De acordo com o disposto na Lei 83/95 de 31 de Agosto, na acção popular, têm legitimidade activa quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
2- São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.

Quanto à legitimidade activa do indivíduo, impõe-se uma questão a que cabe
dar resposta: o art. 9.º, n.º 2 do CPTA, ao utilizar a expressão “qualquer pessoa”, haverá revogado a condição de “cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos” para a interposição da acção popular administrativa?
Nesta questão seguimos a opinião de Mário Aroso de Almeida, entendo assim
que não foi esse o objectivo do referido artigo do CPTA. Há que ver que no próprio texto, quando se refere de forma não exclusiva à acção popular, condiciona-se a legitimidade para a interposição da acção aos termos previstos na lei específica. Desta forma se conclui que a legitimidade para a população administrativa continua a ser do cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos e não de qualquer indivíduo.
Outra questão que pede resposta é a de saber se a legitimidade activa do
cidadão exige que o mesmo seja membro da comunidade atingida pela lesão ou pela ameaça de lesão ao interesse difuso em causa. Tal posição é defendida entre nós por Marques Antunes. Ao encontro da posição de Gaião Rodrigues, entendemos que não. O direito à acção popular, por ser um dos direitos, liberdades e garantias só pode ser limitado por uma lei geral, abstracta e não retroactiva, sendo que qualquer outra forma, não prevista na lei, seria ilegítima, mesmo que apresentada pela mais conceituada doutrina e jurisprudência. Ora, citando Gaião Rodrigues: o direito da acção popular não exige que um cidadão seja directamente afectado por um crime ecológico para ter legitimidade para actuar judicialmente contra os seus responsáveis; não exige que um cidadão resida em determinada localidade em que se cometa um atentado contra o património cultural para que a sua indignação tenha como consequência uma actuação destinada a impedir a sua consumação.
O facto de existir doutrina com uma visão subjectiva do contencioso
administrativo, assim como, por outro lado, de uma visão objectiva do mesmo, tem consequências nos diferentes entendimentos doutrinários no que respeita à legitimidade activa da acção popular.
Para a corrente objectivista da nossa doutrina, a acção popular consiste num mecanismo de participação dos administrados no controlo da legalidade da actuação da Administração Pública. O Professor Paulo Otero, indo ao encontro desta visão, afirma que aquilo que está em causa na acção popular é, em primeiro lugar, o prescindir da exigência de um interesse pessoal e directo como critério aferidor da legitimidade activa: a acção popular transforma os administrados em defensores da legalidade objectiva e do interesse público.
Por outro lado, a corrente subjectiva defende não ser possível a acção popular no caso da existência de directos que sejam subjectiváveis. De acordo com esta corrente, a acção popular atribui uma legitimidade alargada, uma vez que tanto os interesses difusos como os interesses legítimos são direitos subjectivos e na acção popular o que está em causa é a legalidade ou o interesse público desprovido de qualquer interesse pessoal.
O Professor Paulo Otero descreve a acção popular como sendo a expressão do
direito fundamental de acesso aos tribunais, afirmando que a sua maior particularidade está na amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.
Tal entendimento é manifestado também pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, in verbis:
I – A acção popular, cujo objecto é, antes de mais, a defesa de interesses que respeitam a toda a comunidade, traduz-se num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa. (Processo 0308/05. Data do Acórdão: 07/03/2006. Relator: Juiz Edmundo Moscoso).
No seguimento do que tem vindo a ser dito, importa referir uma questão que tem provocado controvérsia no seio da nossa doutrina: será a acção popular um mero direito de acção judicial?
Na senda de encontrar uma resposta a esta questão é necessário que se abordem as posições das duas correntes doutrinárias divergentes. A primeira, tradicional, cujos nomes de maior relevo são o Professor Paulo Otero e o Professor Miguel Teixeira de Sousa, encara este instituto como um direito de acção judicial que se consubstancia na faculdade do seu titular desencadear o exercício da função jurisdicional do Estado, com vista à tutela de um interesse material. De acordo com o Professor Paulo Otero, existe um alargamento da legitimidade processual activa na
medida em que se prescinde da exigência de que o actor popular tenha um interesse pessoal e directo. Nas palavras do próprio A acção popular consubstancia, deste modo, um meio que permite a um maior número de administrados exercerem uma função de controlo da Administração, libertos que estão dos estreitos critérios aferidores da legitimidade existentes ao nível tradicional do recurso contencioso.
Quanto à outra corrente doutrinária, da qual são partidários o Professor Vasco Pereira da Silva e o Professor Nuno Marques Antunes, podemos dizer que tem uma visão subjectiva do contencioso administrativo, considerando por isso que, em caso de uma agressão a um direito fundamental, a acção popular não é somente um direito de acção judicial, mas antes um direito subjectivo público que é contraposto ao dever jurídico-constitucional de abstenção que a Administração violou. Assim, passa também a haver uma protecção dos interesses difusos que são conduzidos à posição de interesse legítimo dos cidadãos. Sobre o assunto, Nuno Antunes refere o seguinte: no âmbito da acção popular, não existe, sempre, um mero direito de acção judicial, criado e conferido à medida da consagração legislativa ordinária. Nos casos em que estão em causa posições jurídicas favoráveis dos particulares, com natureza jusfundamental, há que entender que existe um direito de defesa, que, por via do princípio da tutela jurisdicional administrativa plena e efectiva, permite ao particular aceder a juízo e proteger seus interesses.
No que diz respeito à função exercida pelo instituto, compreende-se que está dependente de qualquer função política. Este está na realidade muito mais ligado à questão jurídica, ao alargamento da legitimidade. Tal circunstância é altamente deriva do Direito Continental Europeu, que influencia a cultura jurídica portuguesa.


Bibliografia:

Otero, Paulo; A Acção Popular: configuração e valor no actual Direito português, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999

Andrade, José Robin; A Acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra:Coimbra Editora, 1967

Almeida, Mário Aroso de; Amaral, Diogo Freitas do, Grandes Linhas de Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição revista e actualizada, Coimbra: Almedina, 2004

Fabrica, Luís; A Acção Popular no Projecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in “Reforma do Contencioso Administrativo”, Ministério Da Justiça. Coimbra: Coimbra Editora, 2003

Silva, Vasco Pereira da; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Coimbra: Almedina, 2005

Silva, Vasco Pereira da; Verde cor de Direito. Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina, 2002

Silva, Vasco Pereira da; Verdes também são os direitos do homem. Responsabilidade Administrativa em matéria de ambiente, Cascais: Principia, 2000


Francisco Rodrigues dos Santos, 17287

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