terça-feira, 3 de maio de 2011

À cautela com o Domínio Hídrico

Fazendo jus ao título do nosso blogue, é com cautela, que deve merecer uma análise prima facie ao denominado Domínio Público Hídrico, onde no tocante às atribuições e competências, existe uma nebulosa e labiríntica repartição por diversos Entes, tanto do Estado como das Autarquias Locais.
Numa primeira aproximação ao conceito de Domínio Público, e adoptando um critério funcional, implicando a afectação do bem ao fim público, podendo a titularidade ser exercida por um sujeito público ou privado[1]. Entre as características de base avultam a inalienabilidade, a imprescritibilidade (ou impossibilidade de ser adquirida por usucapião), a impenhorabilidade, a insusceptibilidade de ser dados como garantia de obrigações (hipotecas) e de serem objecto de execução forçada ou de expropriação por utilidade pública (embora seja admissível a desapropriação do Domínio Público Local ou Regional, com reservas…) Para não se cair numa vacuidade conceptual, é necessário delimitar o conceito de coisa pública alicerçado na escassez do bem público para a satisfação das necessidades da colectividade. Logo, é necessário que se tome a noção de coisa pública numa concepção i) subjectiva e ii) objectiva.
i)Em sentido subjectivo um bem é público quando pertence a algum ente público
ii)Em sentido objectivo quando o bem em causa fornece uma utilidade à colectividade pública.
Depreende-se desta distinção que só quando encarado numa perspectiva objectivista é que se vislumbra o sistema solar dos bens que estão ao alcance da identificação como coisas públicas

Afigura-se indubitável o facto de a Lei Fundamental atribuir às pessoas colectivas públicas territoriais a titularidade de bens do Domínio Público, (artigo 84.º da CRP, aditado com a RC/89). Já anteriormente era considerado pela Doutrina a titularidade de certos bens de Domínio Público a outras pessoas colectivas territoriais que não o Estado, contudo esta alteração de paradigma não é irrelevante, traduzindo um comando legiferante que consubstancia a vontade Constitucional na promoção da descentralização administrativa que se afigura proeminentemente no tocante ao Poder Local (arts. 235.º a 254.º CRP) e nas Regiões Autónomas (arts. 225.º a 234.º CRP).
A ratio texto reside na relação que se estabelece entre as ARH[2] que são institutos públicos periféricos do INAG[3], o ICN – Parques naturais e Municípios, designadamente Câmaras Municipais no tocante à manutenção e prevenção do Domínio Público Hídrico. Relação com competências concorrenciais (muitas vezes até coincidentes e complementares)… numa encruzilhada jurídica que permite muitos atropelos à autonomia do Poder Municipal. No que tange ao Domínio Público Hídrico, a questão torna-se muito mais nebulosa, porquanto apesar da sua expressa consagração constitucional (art. 84º 1 a)), o regime jurídico que regula o Direito Público da Água está plasmado na denominada “Lei da Água” [4], dispositivo legal muito complexo e labiríntico como se verá infra.
A reflexão sobre a administração da água, terá que ter por base a unidade de gestão dos recursos hídricos – Bacia hidrográfica[5] o que permite inferir que esta escolha é uma manifestação do conceito de gestão integrada promovendo a integração territorial permitindo uma integração entre os diferentes tipos de usos. No nosso ordenamento o Domínio Público Hídrico é consideravelmente extenso abarcando também as respectivas margens numa largura de 50 metros, abrangendo também as arribas e as “dunas fosseis instáveis”[6]

Em matéria de gestão do Domínio Público Hídrico, foram atribuídas competências à autoridade nacional da água, o INAG. Este Instituto Público tem como uma das atribuições cimeiras coordenação nacional do planeamento das águas. É a este instituto que está incumbido de assegurar a realização dos objectivos que estão especificados nos planos de bacia hidrográfica (art. 8.º nº 2, al. f) e ex vi  art. 7º nº 1 al. a) da Lei 54/2005). Verifica-se neste caso um dever de actuação do INAG caso não sejam realizados os programas da respectiva área de jurisdição das ARH.
Este dever encontra-se plasmado com mais intensidade no art. 8º, nº 3 al. a),  in fine, que permite que INAG possa ter poderes  típicos de superintendência, enquanto poder conferido a uma pessoa colectiva de “guiar a actuação” e nalguns casos poderes de tutela[7]
Este poder, no mínimo, de difícil enquadramento no sentido de que a os poderes de superintendência e de tutela sobre a administração indirecta do Estado competem ao Governo, nos termos do art. 199º, al. d) da CRP.[8]

A dificuldade torna-se crescente quando existe uma omissão no que concerne ao cumprimento dos planos a cargo da ARH, e o INAG não se substituir.  Esta inércia reiterada do órgão normalmente competente para a prática de actos devidos sobre matérias de desconcentração relativa pode fundamentar a intervenção do governo através de uma substituição integrativa.   Assim o exige afinal da reposição da legalidade e todos os corolários do princípio da unidade intra-subjectiva da administração, designadamente o grau máximo de responsabilidade politica do governo junto da AR pela actividade da administração directa do estado sujeita ao seu poder hierárquico[9].          

O labirinto torna-se ainda mais denso se atentarmos nas zonas de Domínio Público Hídrico, às zonas costeiras. E se estas estiverem integradas na Rede Nacional das Áreas Protegidas (RNAP), ao abrigo do art. 10.º do DL nº 142/2008, a complexidade e flexibilidade das competências torna-se abrupta. Porque a competência para iniciar os Planos de Ordenamento da Orla Costeira reside no INAG, (art. 7º do DL nº 309/93)[10], contudo, como se está, v.g. num Parque Natural, as autoridades a quem cabe, agora, a conservação e fiscalização da natureza e biodiversidade, art. 8º do DL nº 148/2008. Ou seja, estas competências que podem ser concorrenciais são um entrave em situações de emergência, como na situação, v.g, da instabilidade da arribas num parque natural onde a ARH não actuou ( ou numa linguagem mais polida, “não foram encontradas soluções técnicas em tempo útil”), nem o INAG avocou a competência delegada. Numa situação como a descrita supra, o Município (s) interessado (s) vêm-se na de por vezes, por inércia das entidades competentes, de ver afectada uma parte importante das receitas e sobretudo do impacto junto dos operadores turísticos, quando são atribuições dos Municípios a promoção do desenvolvimento, art. 13, nº 1, al. n), ex vi art. 28, nº 1, al. e) da Lei 159/99.

Sendo assim, o Município em causa pode recorrer a Juízo em homenagem ao princípio da tutela jurisdicional efectiva em matéria administrativa, art. 20º da CRP. Neste caso verifica-se que as autoridades competentes, INAG e ARH, não adoptaram as condutas necessárias no sentido do restabelecimento de direitos dos munícipes, maxime, dos cidadãos.
Quanto à legitimidade activa para actuar em Juízo, verifica-se que as Autarquias Locais, neste caso Câmara Municipal, têm legitimidade para propor e para agir nos termos previstos na lei.
No caso em epígrafe, existirá uma pretensão de conteúdo condenatório. Neste caso trata-se de um litígio inter-administrativo em que a forma seguida será a da acção administrativa comum, art. 37º, al. j) do CPTA porque este corresponde a uma relação jurídica tendencialmente paritária, neste caso entre dois entidades públicas, uma da administração indirecta do Estado, outra da Administração Autónoma do Estado, não havendo qualquer tipo (ou não devendo haver) de poderes de autoridade daquela sobre esta.
Face à complexidade presente é fácil perceber que neste litígio, haveria um pretensão por parte do Município tendo em vista o cumprimento por parte do INAG, das condições necessárias à prática balnear numa determinada zona de um parque natural com arribas instáveis…


[1] Outros critérios da dominialidade pública podem ser seguidos (em linhas muito gerais) o critério monista, onde se defende a aplicabilidade do Direito Privado ao Domínio Público, o critério dualista que assenta na possibilidade de constituição de Direitos Reais sobre o Domínio Público. como o critério suis generis, que atende à especificidade da propriedade pública como uma propriedade finalista assente em vectores de natureza institucional e orgânica que lhe permitem possuir autonomia.
[2] As Administrações de Região Hidrográfica são institutos públicos periféricos dotados de autonomia administrativa e financeira criando assim uma entidade pertencente a uma administração desconcentrada e especializada. São unidades principais de planeamento e gestão das águas. Foram criadas pelo nº 2 do artigo 3.º da Lei da Água, tendo as delimitações sido operadas pelo DL nº 347/2007.
[3] Instituto da Água é a Autoridade Nacional da Água, que representa o Estado como garante da política nacional das águas como está plasmado no art. 8.º, ex vi art. 7, nº1, al. a) da Lei 55/2005.
[4] Vide Lei nº 55/2005.
[5] A bacia hidrográfica obedece a fronteiras ecológicas, potencialmente ultrapassando os limites territoriais administrativos tradicionais devendo ter em conta a realidade hidrológica.
[6] Cfr. Lei nº 54/2005.
[7] Vide  art. 1, nº 3 da Lei 55/2005.
[8] Que está plasmado nos artigos 41º e 42º da Lei Quadro dos Institutos Públicos
[9] Vide OTERO, Paulo, O Poder de Substituição no Direito Administrativo, volume II, 1997, Almedina, pp. 708, 800 e 801.
[10] Planos de Ordenamento da Orla Costeira.


Diogo Geraldes, aluno nº 17261

Sem comentários:

Enviar um comentário