terça-feira, 24 de maio de 2011

A concessão de providências cautelares no âmbito
dos procedimentos de formação de contratos

Os processos cautelares encontram-se regulados no Titulo V do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), estando as disposições gerais previstas nos arts. 112º e ss., e as disposições particulares nos arts. 128º e ss. As providências relativas a procedimentos de formação de contratos enquadram-se no âmbito das disposições particulares, no art. 132º. No que a esta matéria diz respeito, o art. 132º, nº 6 afasta-se do regime geral de concessão de providências cautelares previsto no art. 120º, estabelecendo requisitos distintos e autónomos no âmbito dos procedimentos de formação de contratos. A jurisprudência, na esteira de alguma doutrina, tem considerado que o decretamento de providências neste domínio está submetido apenas ao critério de ponderação de interesses, ressalva feita à aplicação do regime excepcional do art. 120º, nº1, al. a), em casos de evidente procedência do processo principal. Sustenta-se, para tal, que não são aplicáveis os requisitos periculum in mora e do fumus boni iuris, segundo os critérios definidos no art. 120º, nº 1, al. b) e c). Tal entendimento alicerça-se na convicção de que a aplicação dos critérios gerais redundaria numa redução drástica da possibilidade de lançar mão deste tipo de providências cautelares, o que contrariaria a sua ratio e objectivos[1].
No entanto, embora formalmente não se exija a verificação de um «fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal» (periculum in mora), constatou-se que a concessão de providencias cautelares neste âmbito é, por regra, recusada com fundamento na falta de alegação e demonstração da probabilidade de sofrer prejuízos decorrentes da actuação ou omissão da entidade adjudicante (não bastando alegar a produção de danos de forma vaga e abstracta, ou seja, a invocação dos prejuízos resultantes da mera qualidade abstracta de vencido ou excluído, por consubstanciar um risco inerente à participação em qualquer procedimento aberto à concorrência, impondo-se a alegação de prejuízos acrescidos aos inerentes à investidura do requerente na posição de concorrente no procedimento pré-contratual) sustentando-se ser um pressuposto imprescindível do juízo de ponderação com outros interesses em causa.
Deste modo, parece que o periculum in mora está, de facto, subjacente ao juízo de ponderação de interesses[2] em virtude de, mais do que um requisito, constituir a própria essência do instituto da tutela cautelar, que visa afastar um perigo específico: o dano marginal que o decurso do tempo pode causar no direito da parte que tem razão. No âmbito dos procedimentos de formação de contratos, foi opção do legislador quanto ao critério de avaliação do dano merecedor de tutela cautelar o facto de o periculum in mora se bastar com a produção ou risco de produção de um prejuízo aos interesses do requerente da providência na pendência do processo principal, sem que se condicione a sua relevância à sua gravidade, difícil reparabilidade ou constituição de uma situação de facto consumado. É, aliás, uma opção consentânea com a forma como o legislador comunitário configurou a legitimidade e o interesse em agir neste âmbito. De harmonia com o art. 1º, nº 3 da Directiva 89/665/CEE, é reconhecida legitimidade e interesse em agir «a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação. Nos termos do 112º, nº 1 CPTA, a legitimidade nas providências cautelares é equiparada à legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos, tendo esta disposição plena aplicação.
Este interesse em agir nas providências cautelares encontra-se, no entanto, dissolvido no requisito do periculum in mora[3](ao contrário no processo cautelar comum, em que é bastante nítida a fronteira entre as situações que justificam a concessão de tutela cautelar e as que fundam o interesse em agir no processo principal). O interesse em agir corporiza-se no perigo de produção de danos específicos na pendência do processo principal, danos e prejuízos que podem advir «no» e «do» desenvolvimento lento e moroso do processo principal. Assim, nos procedimentos de formação de contratos, o interesse em agir está verificado quando o interesse na adjudicação, «o interesse em obter um determinado contrato», é lesado ou existe risco de lesão. O requerente tem de alegar e demonstrar que, a ser concedida a providência, ele retira dela alguma utilidade.
A necessidade de tutela cautelar resulta de a iminência da celebração e execução do contrato ameaçarem a efectividade da sentença final, colocando entraves sérios ou prejudicando a repetição do procedimento e a reapreciação da pretensão do requerente. Esta tem sido a posição seguida pela maioria dos tribunais europeus.
Assim, sempre que haja violação de direitos materiais, i. e., posições substantivas decorrentes das regras da contratação publica que afectem ou possam afectar o interesse na adjudicação de um determinado operador económico, deve ser garantida tutela cautelar. Afastado o sistema tradicional que só admitia a invocação de violação de posições substantivas procedimentais quando essa violação se traduza numa lesão da posição substantiva de fundo (o interesse na adjudicação), e imposta uma antecipação da tutela, passa a ser suficiente alegar o risco de lesão dessa posição de fundo. O acesso aos meios contenciosos e cautelares está, por conseguinte, aberto a quem alegue a susceptibilidade de lesão do seu interesse na adjudicação por via da violação das regras da contratação pública que atribuam uma posição substantiva procedimental, cujo respeito se destina a prevenir eventuais lesões aos interessados.
Pode, todavia, não justificar-se a suspensão da eficácia do acto de adjudicação ou suspender o procedimento de formação do contrato com fundamento apenas nessa violação. O art. 132º prevê que possam ser requeridas providências cautelares destinadas a corrigir a ilegalidade numa fase em que o procedimento de formação do contrato está ainda em curso, o que se revela essencial para garantir que o procedimento se desenvolva de acordo com as normas de contratação pública, evitando a sua excessiva morosidade.
Estas providências cautelares antecipatórias exigem que se respeite os limites da summario cognitio. Quando o tribunal se depare com uma violação de uma posição procedimental que corporize uma situação de evidente procedência do processo principal (art. 120º, al. a) ex vi art. 132º, nº 6) ou um potencial prejuízo no âmbito da ponderação dos diversos interesses em presença (art. 132º, nº 6, 2ª parte), deverá optar por determinar a correcção da sua ilegalidade, ao abrigo do art. 120º, nº 3 e 132º, nº 6 in fine, devendo as providencias cautelares a adoptar limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente, como defende Gouveia Martins. Não existe qualquer subsidiariedade das providencias antecipatórias e atípicas, e não é apta a causar prejuízos graves ao interesse público e aos dos outros participantes no processo, ao contraio do que pode suceder com a suspensão da eficácia ou do procedimento.
A adopção desta providencia pressupõe que seja apreciada, ainda que sumariamente, a alegada ilegalidade, o que significa que o requisito do fumus boni iuris também se verifica.
Por último, cabe referir que o critério de ponderação de todos os interesses, no art. 132º, nº 6, implica que a avaliação comparativa deva ser feita segundo critérios idóneos a assegurar uma tutela efectiva ao requerente. Não basta qualquer perturbação ou inconveniente para o interesse público para afastar a possibilidade de ser decretada a providência cautelar requerida. O que se pretende é ajuizar se os prejuízos causados ao interesse público e demais interesses pela concessão da providência são ou não superiores aos prejuízos causados aos interesses do requerente no caso da sua recusa.

Bibliografia
. Andrade, Vieira de, A justiça administrativa, 11.ª ed, Almedina, 2011.
. Almeida, Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4.ª ed., Almedina, 2005.
. Almeida, Mário Aroso de Almeida, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005.
. Martins, Ana Gouveia, A tutela cautelar no contencioso administrativo (em especial, nos procedimentos de formação de contratos), Coimbra Editora, 2005.
. Martins, Ana Gouveia, Algumas questões sobre a concessão de providências cautelares no âmbito dos procedimentos de formação dos contratos, in CJA, nº 85, Janeiro/Fevereiro 2011.
. Oliveira, Rodrigo Esteves de, O contencioso urgente na função pública, in CJA, nº 78.
. Varela, Antunes / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985.    
 
Filipa Correia Henriques
 
Nº 17275
 
 


[1]Cfr. Mário Aroso de Almeida, O novo regime de processo nos tribunais administrativos, 4.ª ed., Almedina, 2005, pp. 335-336.
[2] Cfr. Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo, Coimbra Editora, 2005, pp. 61 e ss., e 526 e ss.
[3] Antunes Varela/ Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 189.

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