sexta-feira, 6 de maio de 2011

A determinação do conteúdo do acto pelo juiz em sede da acção de condenação

Antes do aparecimento da figura da condenação à prática do acto devido, verificava-se que a recusa da Administração em praticar o acto administrativo solicitado pelo particular ou o silêncio perante a solicitação colocavam o particular numa situação bastante delicada, uma vez que os meios de tutela existentes no nosso ordenamento jurídico não garantiam a defesa adequada dos interesses do particular; e assim o era porque, visto bem, a anulação da decisão negativa da Administração não equivale à emissão do acto administrativo necessário à satisfação da pretensão.
            Mais: tendo em conta o novo meio contencioso então introduzido, mesmo que se passasse da mera anulação do acto administrativo à condenação da Administração, iriam de imediato ser colocadas questões como o que fazer no caso de a Administração não executar a sentença ou a executar defeituosamente. Inclusive alertava-se para o facto de o processo de execução de sentenças, previsto nos arts. 5º e 6º do Decreto-Lei nº256-A/77, de 17 de Junho se reduzir a uma transcrição da sentença formalmente anulatória, numa sentença de condenação com acções de indemnização acopladas, sendo que as possibilidades de autêntica execução coerciva pareciam ser muito limitadas.
            Nesse caso, a nova reforma encontrou uma solução para que a tutela jurisdicional também estivesse garantida nessas situações. Falamos da determinação da prática do acto devido, que uma parte da doutrina tem afirmado que se trata da consagração dos poderes de substituição do juíz, que de resto encontra norma legal expressa no art. 71º/2 do CPTA.
            Utilizando a expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva “o tribunal vai para além do acto” no sentido em que não se contenta com a formal apreciação da existência de um acto administrativo de rejeição liminar, nem se limitando a mandar praticar um qualquer acto (constatando a simples existência de uma omissão configuradora da violação do dever de decidir). O tribunal procede sim, a um juízo material sobre o litígio, julgando acerca da existência e do alcance do direito do particular e, consequentemente, determinando o conteúdo do comportamento da Administração.
A favor desta determinação pelo juiz, é dito que é uma forma de exercer um poder em benefício dos direitos dos cidadãos e do interesse público, um meio de restringir o poder da Administração pelo controlo jurisdicional; mas perguntamo-nos se, com este estender dos poderes de substituição do juiz, não se estará inevitavelmente a violar o princípio da separação de poderes.
            Conforme dito pelo Prof. Sérvulo Correia, os tribunais administrativos não se encontram absolutamente impedidos de gerar, através das suas decisões, efeitos jurídico-administrativos substantivos idênticos àqueles que podem ser produzidos por órgãos da Administração através do exercício das suas competências dispositivas; mas tal acontecerá apenas por razões muito ponderosas e excepcionais, visto que o exercício de poderes administrativos se insere num sistema de responsabilidade democrática, de coerência organizatória e de funcionalidade teleológica a que os tribunais não podem deixar de se conservar alheios.
            Importa agora verificar o que se sucede quando estamos perante a prática de um acto administrativo que implica o exercício do poder discricionário pela Administração e quando estamos perante a prática de um acto administrativo vinculado:
            No primeiro caso, não encontramos uma restrição plena da intervenção do tribunal na acção em que está em causa o exercício do poder discricionário pela Administração: o juiz pode dar directivas de juridicidade ou vinculações a observar à Administração. E ainda que estas directivas ou vinculações devam ser genéricas, a questão não deixa de se colocar, no sentido de que os parâmetros a utilizar são, eles próprios, genéricos (como por exemplo, a aplicação dos princípios gerais da actividade administrativa).
            Na segunda hipótese, em que se trata de acto vinculado, analisando o art. 179º/5 do CPTA verificamos que em matéria de execução de sentenças prevê-se que “Quando, estando em causa a prática de um acto administrativo legalmente devido de conteúdo vinculado, expire o prazo a que se refere o nº1 sem que a Administração o tenha praticado, pode o interessado requerer ao tribunal a emissão de sentença que produza os efeitos do acto ilegalmente omitido.” Também é certo que o número primeiro do mesmo artigo refere que o tribunal especifica o conteúdo dos actos a adoptar para dar execução à sentença “no respeito pelos espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa”, ou seja, a lei pareceu querer evidenciar um espaço de autonomia da Administração. Mas o preceito continua, explicitando que o juiz fixa, segundo critérios de razoabilidade, o prazo em que os actos devem ser praticados.
Ora, não estaremos nós perante uma interferência do juiz, ao fixar até mesmo o momento da prática do acto a desempenhar pelo Administração? É certo que se trata de um acto vinculado, mas mesmo nos actos vinculados, não existirá a possibilidade de o órgão que o pratica escolher o momento que considera mais oportuno para a prática do acto?
Poderá também levantar-se uma questão de interesse processual uma vez que a execução da sentença proferida numa acção de reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido já permite, à partida, obter aquilo que a acção para a determinação da prática do acto devido vem consentir directamente.
Ora, em face do previsto no art. 71º/2 do CPTA, que permite ao juiz explicitar, no âmbito da acção de condenação, as vinculações a observar pela Administração, bem como formular directivas de juridicidade (por vezes quanto ao preenchimento de conceitos indeterminados) constatamos que numa sentença emitida nestes termos estão já determinados os actos em que a execução deve consistir (execução essa que a lei queria discricionária). Dir-se-ia mesmo que falta apenas que a sentença funcione, como regra geral, como substituto do dito acto de execução, o que levanta a questão que foi mencionada acima da necessidade do respeito pelo princípio da separação de poderes. Terminamos, em jeito de conclusão, citando o Prof. Vieira de Andrade: “...impossibilidade de substituição pelo juiz na produção de efeitos jurídicos – corresponde ao exercício de poderes discricionários, cujo cerne constitui um limite, já várias vezes referido, à actividade administrativa judicial, expressão do princípio constitucional da separação de poderes.”

Bibliografia:

-         Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, 2005.
-         Andrade, José Carlos Vieira, A Justiça Administrativa, 10.ª edição, Almedina 2009.
-         Correia, Sérvulo, Noções de Direito Administrativo, Lisboa, 1982.
-         Portocarrero, Maria Francisca, Reflexões sobre os poderes de pronúncia do tribunal num novo meio contencioso, 2008.

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