quarta-feira, 25 de maio de 2011

Legitimidade Processual e Acção Popular
 no Direito do Ambiente

O tema da presente exposição incide sobre a legitimidade processual e a acção popular na tutela jurisdicional do ambiente.
 A preocupação com o estado do meio ambiente constitui hoje um sentimento com uma expressão cada vez maior nas sociedades modernas, envolvendo uma problemática quer a nível dogmático ou doutrinário, quer a nível de política legislativa.
O art. 66º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (= CRP), estabelece que «todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender». Esta formulação também se encontra presente no art. 2º, nº 1 da Lei de Bases do Ambiente (= LBA, Lei nº 11/87, de 7 de Abril). O objecto desse direito fundamental – o ambiente – é definido no art. 5º, nº 2, al. a), LBA: «ambiente é o conjunto de sistemas físicos, químicos e biológicos e suas relações, e dos factores económicos, sócias e culturais, com efeito directo ou indirecto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem». 
Desta referida tutela constitucional resulta não só a atribuição de um direito a qualquer sujeito a um o ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, como um correspondente dever de defesa e preservação do mesmo. Este aspecto é relevante para a análise em causa, na medida em que o direito ao ambiente concretiza-se na faculdade de exigir a terceiros determinadas condutas, activas ou omissivas: deste dever decorre a obrigação de não contribuir para a degradação do meio ambiente, o que equivale a um dever de conteúdo omissivo e preventivo, como também a obrigação de reagir contra qualquer ofensa ao meio ambiente, seja por meios não jurisdicionais, seja através do recurso aos tribunais, e, portanto, uma obrigação de conteúdo activo e repressivo.
A titularidade desse direito ao ambiente e dever de preservação do mesmo pode ser analisada em duas perspectivas:
- Numa perspectiva individual, enquanto direito subjectivo ou, pelo menos, um interesse juridicamente relevante, em que está em causa uma apropriação individual e uma utilização em benefício directo e próprio do ambiente, e, portanto, a atribuição da titularidade do direito a cada um dos interessados directos;
 - Numa perspectiva supra-individual, no âmbito da qual é reconhecido a todos e a cada um o direito de usufruir de um ambiente humano, sadio e ecologicamente equilibrado, e o dever (jurídico) de o preservar. Este direito e dever em causa devem ser perspectivados no âmbito dos chamados interesses difusos.
Um interesse difuso corresponde a um interesse juridicamente conhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo, mas não é susceptível de apropriação individual por qualquer um desses membros. Distingue-se do interesse público, pois a sua titularidade não pertence a nenhuma entidade ou órgão público; do interesse colectivo, porque não pertence a uma comunidade ou a um grupo mas a cada um dos seus membros; do interesse individual, dado que o bem jurídico a que se referem é inapropriável individualmente, e esse interesse são insusceptíveis de serem atribuídos de serem atribuídos em exclusivo a um sujeito, ambos pertencem a qualquer um dos membros de uma comunidade ou grupo.
Estas dimensões não são antagónicas, mas complementares, na medida em que aquele que reage contra uma ofensa à sua qualidade de vida preserva igualmente o ambiente da comunidade e a preservação deste ambiente também salvaguarda interesses individuais.
A protecção do ambiente traduz-se, assim, num interesse de preservação de um bem de fruição colectiva, que se presta a ser defendido através de instrumentos de alargamento da legitimidade processual activa, e não de vias processuais especificas.
Da natureza simultaneamente pública e colectiva do bem ambiente, que resulta dos arts. 9º, al. e), 52º, nº 3 e 66º, nº 2 CRP, e da não individualidade dos interesses defendidos resulta a insusceptibilidade de defender directamente o interesse ambiental através da legitimidade singular tradicional.

A tutela contenciosa ambiental
Com a aprovação do ETAF pela Lei 13/02, de 19 de Fevereiro, houve uma revogação substitutiva, há muito desejada pela doutrina e jurisprudência, do art. 45º LBA, no sentido de o conformar ao parâmetro constitucional do art. 212º/3 CRP. Este reservava ao contencioso cível o julgamento das acções emergentes de litígios jusambientais, partindo de um pressuposto personalista e privatista desta disciplina, identificando os litígios ambientais com questões relativas à defesa dos direitos de personalidade dos lesados, com eventual efeito mediato favorável sobre os bens ambientais.
Na versão actual, a remissão constante no nº 1 do art. 45º LAB obriga à caracterização da natureza da relação jurídica subjacente ao litígio, como condição prévia de determinação da jurisdição. O art. 4º, nº1, al. b) conjugado com a al. l) ETAF tornam clara a jurisdição administrativa como o foro preferencial do contencioso ambiental, na medida em que utilização de bens ambientais naturais está sujeita a um princípio de gestão racional (logo, a uma lógica de proibição sobre reserva de permissão) o que resulta na proliferação de actos autorizativos e de normas de onde decorrem parâmetros de actuação, cuja validade deve ser sindicada junto dos tribunais administrativos, e ainda pelo facto de a “captura” das acções propostas por autores populares contra entidades públicas por violações (activas e omissivas, materiais e jurídicas) de normais jusambientais.
A leitura conjugada das alíneas b) e l) do art. 4º ETAF permite, então, concluir que:
- Sempre que esteja em causa a validade de uma autorização, independentemente de se estar a defender interesses individuais ou colectivos, os tribunais administrativos são competentes (trata-se do núcleo de reserva de função afirmada nos arts. 212º, nº 3 CRP e art. 1º, nº 1 ETAF e confirmada na al. b));
- Sempre que esteja em causa a violação de normas de protecção do interesse do interesse ambiental por entidades públicas responsáveis pela ofensa, material ou juridicamente (porque produzem poluição acima dos limiares aceitáveis, ou por serem responsáveis pela adopção de um acto autorizativo que permite a um terceiro tal emissão, o foro competente é o administrativo, pela al. l);
- Sempre que esteja em causa a violação (inclui-se situações omissivas quando se configura um dever legal de agir) de normas de protecção do interesse ambiental por entidades públicas consubstanciada numa omissão de fiscalização de instalações ou actividade autorizadas, a acção tendente à condenação daquelas na prática das diligências necessárias à reposição da legalidade é proposta nos tribunais administrativos, através de acção administrativa comum, na medida em que está em causa a condenação no desenvolvimento de actuações materiais e eventualmente de aplicação de sanções, eventualmente acompanhado de providências cautelares (art. 112º, nº 2, al. f) CPTA) – al. l).
Casos duvidosos existirão na doutrina, nomeadamente quando há ofensa a normas jusambientais, traduzida na exploração de uma actividade, por um privado, sem autorização, sendo ela necessária. Para AROSO DE ALMEIDA, esta situação configura uma violação de um dever de agir da Administração, que traz o litígio para a jurisdição administrativa. CARLA AMADO GOMES defende que tal solução parte de uma premissa de omnipresença da Administração ambiental que não se verificará. Para esta autora, a jurisdição administrativa só será competente caso o autor demonstre que alertou as autoridades e estas se remeteram à inércia e aí, analogamente à previsão do art. 37º, nº 3 CPTA, poderá dar-se a captação do litígio pelo foro administrativo, uma vez consubstanciada formal e circunstancialmente a omissão de agir. A acção administrativa comum deve, pois, ser proposta contra o privado prevaricador e contra a Administração que relaxou os seus deveres de fiscalização.

A natureza e as especificidades dos bens ambientais implicam uma compreensão alargada da legitimidade, procedimental e processual. Assim surge a legitimidade popular, acolhida na Lei Fundamental (art. 52º, nº 3, al. a) e b), CRP) e na lei ordinária: está em causa a tutela de interesses difusos, stricto sensu, e a tutela de interesses públicos na vertente de bens do domínio público. Esta é uma extensão da legitimidade processual – um pressuposto processual que dispensa a prova do interesse directo e pessoal. Não se trata de um meio processual, mas de um conjunto de especialidades processuais que se enxertam nos meios processuais concretamente utilizados pelos autores populares, na jurisdição administrativa e na cível. Tal decorre do art. 12º LAP.
O âmbito objectivo decorre do art. 1º, nº 2 LAP, que fixa os interesses tutelados pela Lei, nomeadamente, o ambiente.
O âmbito subjectivo resulta dos arts. 2º e 3º da LAP. Assim, os sujeitos investidos de legitimidade popular são:
- Os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, isoladamente ou em grupo. Este não é um direito exclusivo dos portugueses mas também de todos os estrangeiros que em Portugal (ou no estrangeiro, em virtude de fenómenos de poluição transfronteiriça originados em Portugal), detectem ameaças a bens ambientais naturais, dada a natureza plurilocalizada das utilidades dos bens naturais.
- Associações e fundações que tenham por função estatutária a promoção do ambiente;
- Autarquias locais “em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”. Abrange quer municípios, quer freguesias. No entanto, estas entidades estão constitucional e legalmente comprometidas na tarefa de protecção do ambiente, facto que lhes confere competência própria de actuação nesta sede, independentemente do recurso aos tribunais (art. 13º, nº 1 e 14º, al. h) da Lei 159/99, de 14 de Setembro).

Resta saber se há meios específicos de tutela contenciosa ambiental. Pelo art. 42º LBA pode concluir-se que esta é uma norma puramente remissiva para um dos foros possíveis de apreciação do litígio, os quais aplicarão as providências cautelares adequadas e suficientes à garantia da utilidade da decisão final. A intenção deste artigo é, pois, apontar caminhos processuais especialmente céleres de defesa dos interesses ecológicos, dada a fragilidade da grande maioria de bens que os integram (maxime, se não regeneráveis) através de providências cautelares, especificadas e não especificadas.
Deve, em primeiro lugar, sublinhar-se o carácter acessório e provisório das providências cautelares. Estas visam salvaguardar o efeito útil de um processo principal, pelo que, se forem concedidas, o requerente fica com o ónus de propor a acção principal, sob pena de caducidade da acção cautelar (art. 113º, nº 1 e 123º CPTA). São processos formalmente autónomos, podendo ser intentados antes, quando ou durante a instauração da acção principal, correndo por apenso a esta (art. 113º, nº 2 e 3).
Em segundo lugar, o princípio da preferência das providências especificadas face às não especificadas (art. 112º, nº1), por uma questão de adequação formal e de facilitação do trabalho do juiz, e ainda pelo art. 120º, nº 3, verificando-se uma dupla subsidiariedade.
Em terceiro lugar, a existência do princípio da interferência mínima que impera nesta sede, e que impõe a ponderação entre a lesão que a providência causará ao requerido e o benefício que proporcionará ao requerente (art. 120º, nº 2).
No que toca a providências especificadas, quer a suspensão da eficácia dos actos (art. 128º e 129º), quer de normas imediatamente exequíveis (art. 130º), pode ser de grande utilidade para a defesa do interesse ecológico. Falamos, no primeiro caso, por exemplo, na suspensão de actos autorizativos (art. 128º, nº 1), que decorre imediatamente da citação da entidade administrativa que os emitiu e prevalece até tomada decisão desta no sentido da necessidade de dar continuação à execução, em nome de imperativos de interesse público, podendo levar o juiz a impedir a continuação de utilização de um título ilegalmente obtido; no segundo, de uma norma constante de um plano especial que admite formas de aproveitamento de um espaço protegido com prejuízo da integridade dos seus componentes. Ainda pelo art. 131º, em casos de «especial urgência», o requerente pode solicitar ao juiz administrativo o decretamento provisório da providência, a decidir num prazo de 48 horas e com audição do requerido por qualquer meio (nº 2).
Apesar da fragilidade dos bens ambientais, cumprem-se igualmente os critérios de ponderação constantes do art. 120º, nº 2, não havendo uma concessão da tutela cautelar automática. Apenas pelo nº 1, al. a) do mesmo artigo se poderia justificar essa automaticidade, pois, tal como o Tribunal Central Administrativo concluiu num Acórdão de 10 de Abril de 2008, «o critério legal é o de carácter evidente da procedência acção, designadamente por manifesta ilegalidade do acto, que se impõe para além de qualquer dúvida razoável, e que se impõe, sumária e perfunctoriamente, sem necessidade das indagações jurídicas próprias. Trata-se de casos de ilegalidade ostensiva, que justificam que o juízo de proporcionalidade quanto à decisão de emissão da medida cautelar se constranja perante a exigência de reposição da legalidade».
Impõe-se, claro, que a «manifesta ilegalidade» seja caracterizada: a doutrina e a jurisprudência remete-a para a violação de preceitos materiais que a lei comine com a nulidade.
Vejamos agora se as intimidações ínsitas no CPTA revelam potencialidade no contencioso administrativo.
A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, acolhida nos arts. 109º a 111º,  para CARLA AMADO COSTA, em sede ambiental, tem reduzida utilidade. Quando intenta com sucesso uma intimação nos termos do art. 109º, o requerido fica investido no direito de exigir da entidade agressora uma conduta, activa ou omissiva, de conteúdo conformado pela pretensão subjectiva que reclama. Defende a Autora que, no âmbito da fruição de bens colectivos, não existem verdadeiros direitos a pretensões individualizadas, mas interesses de facto de conteúdo subjectivamente indeterminável, em razão da inapropriabilidade de tais bens.
Posição contrária tem VIEIRA DE ANDRADE ao defender a admissibilidade de acção popular no âmbito de defesa de bens colectivos, tal como o ambiente, pois «a legitimidade concretizar-se-ia desde que tal respeite a disponibilidade legítima dos direitos pelos respectivos titulares». Somos a preferir esta solução, na medida em que em causa está simultaneamente a possibilidade de haver uma pretensão jurídica individualizada, mesmo que também seja susceptível de haver um interesse na fruição de bens colectivos.
Já utilidade da intimação para prestação de informações, consulta de processos e emissão de certidões, prevista no art. 104º e ss, é indiscutível, pois prende-se, precisamente, com a prestação de informação ambiental pela CADA, nos termos do art. 15º da Lei 46/07, de 24 de Agosto, por remissão do art. 14º, nº 2 da LAIA. De acordo com o art. 11, nº 6 LAIA, o requerente pode propor uma intimação quando veja ilegalmente sonegado o seu direito, independentemente de querer vir a fazer uso da acção administrativa, comum ou especial, para questionar actuações informais, actos materiais ou actos administrativos que lesem ou ameacem lesar o ambiente.
A utilização deste meio, salvo se outra coisa resultar de lei especial, pressupõe a urgência na satisfação do pedido do requerente, e respeitar os trâmites do art. 105º, 107º, nº 1 e 108º.

Bibliografia
. Almeida, António, A acção popular e a lesão de bens ambientais, in Lusiada, 2002/1-2
. Freitas, José Lebre de, in Ab Uno Ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998
. Gomes, Carla Amado, Direito Administrativo do Ambiente, Almedina, 2009
. Gomes, Carla Amado, O ambiente como objecto e os objectos do Direito do Ambiente, Textos dispersos de Direito do Ambiente, 2008.
. Otero, Paulo, A acção popular. Configuração e valor no actual Direito Português, in ROA, 1999
. Sousa, Miguel Teixeira de, Legitimidade processual e acção popular no Direito do Ambiente, in Direito do Ambiente, 1994
. Sousa, Miguel Teixeira de, A competência material para a acção popular administrativa, Anotação ao Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11 de Janeiro de 2000, in CJA, 2000.


Filipa Correia Henriques
nº 17275

Sem comentários:

Enviar um comentário