terça-feira, 24 de maio de 2011

Os actos de controlo prévio das operações urbanísticas e o silêncio da Administração

Os actos de controlo prévio das operações urbanísticas e o silêncio da Administração


A Administração Pública existe para a prossecução dos interesses públicos que lhe estão cometidos por lei. Se a Administração Pública serve para prossecução dos interesses públicos podemos compreender que é inadmissível que os particulares não obtenham uma resposta às suas pretensões, mesmo se esta tiver que ser negativa, sem lhes dar um meio para que estes possam reagir contra esta inércia.
Há várias maneiras de resolver este problema, entre as quais o uso de um acto administrativo tácito. Para que seja possível recorrer a esta figura é necessário que o órgão da Administração seja solicitado por um interessado a pronunciar-se num caso concreto; que a matéria sobre que esse órgão é solicitado a pronunciar-se seja da sua competência; que o órgão tenha, sobre a matéria em causa, o dever legal de decidir através de um acto definitivo; que tenha decorrido o prazo legal sem que haja sido tomada uma decisão expressa sobre o pedido; e que a lei atribua ao silêncio da Administração durante esse prazo o significado jurídico de deferimento ou indeferimento (artigos 9º, 108º e 109º CPA).
Este acto tácito pode ser de dois tipos: positivo (acto tácito positivo ou deferimento tácito) que consiste em a lei atribuir ao silêncio da Administração um valor positivo, ou seja, de aceitação da pretensão pedida; negativo (acto tácito negativo ou indeferimento tácito), que consiste na atribuição pela lei de um valor negativo ao silêncio da Administração, ou seja, decorrido o prazo legal sem que o pedido formulado pelo particular ao órgão competente tenha resposta, atende-se que tal pedido foi indeferido.
A atribuição ao “acto tácito” de um valor positivo cria em determinadas situações, como vamos ver, vantagens para o particular, que vê satisfeita a sua pretensão, que podemos até questionar se não será abusivo para os restantes particulares que possam ser lesionados pela inércia da Administração que deu origem a essas vantagens.
Com a figura do acto tácito negativo, logo que passe o prazo legal sem haver resposta da Administração, o particular poderá recorrer contenciosamente contra o indeferimento (tácito) da sua pretensão. No nosso ordenamento, a regra quanto ao silêncio da Administração é que este deve ser entendido como um indeferimento tácito.
Se o particular tem direito a uma dada conduta da Administração, e esta através do silêncio recusa reconhecer-lhe esse direito ou cumprir os deveres correspondentes, o particular impugnará contenciosamente o indeferimento tácito com fundamento na violação da lei. O indeferimento tácito está sempre, pelo menos, afectado de dois vícios: violação de lei por falta de decisão e vício de forma por falta de fundamentação.
O artigo 268° n.º 4 e nº 5 da CRP estabelece que está garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas. Os cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa que sejam lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Partindo do disposto na lei fundamental, o legislador português teve de criar um sistema jurisdicional eficaz para que o particular possa ver garantido os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Contudo, não tem sido uma criação pacífica.
Segundo o Professor Alves Correira, o relevo jurídico do acto tácito tem duas vertentes: uma vertente objectiva (ao se considerar que o silêncio é uma violação objectiva da ordem jurídica, independentemente da “repercussão que tiver na esfera jurídica dos particulares uti singuli ou como uma situação de antijuridicidade em sentido objectivo”); e subjectiva (que se caracteriza pelo direito de resposta por parte do particular que se dirigiu à Administração, desde que se tenham verificado os pressupostos para o acto poder ser tácito, sendo que nesta vertente haverá uma violação do direito fundamental dos particulares – direito de petição, artigo 52º/1, e de decisão).
O artigo 109º, nº1 do CPA prevê que a falta da decisão final (no prazo, em regra, de 90 dias) faz presumir indeferida a pretensão do particular, salvo disposição em contrário, para poder exercer o respectivo meio legal de impugnação de impugnação. O artigo 108º, nº1 do CPA prevê um conjunto de casos em que o silêncio tem o valor de deferimento e não de indeferimento (geralmente são aqueles em que a prática de um acto administrativo “ou o exercício de um direito por um particular dependam de aprovação ou autorização de um órgão administrativo”). O problema é que não podemos atender a estas normas do CPA isoladamente, visto que a revisão do CPTA veio abolir a figura do indeferimento tácito (artigo 67º/1,a) e 51º, nº4 do CPTA – prevêm a possibilidade de ser proposta uma acção de condenação à prática de actos administrativos ilegalmente omitidos). O CPTA já não encara o silêncio como uma omissão e não um “acto ficcionado”, reservando o termo “indeferimento” quando se quer referir aos actos expressos de conteúdo negativo.
A doutrina defende que a entrada em vigor do CPTA veio revogar tacitamente o artigo 109º, nº1 do CPA, na parte em que este prevê que se confere ao interessado a faculdade de se “presumir indeferida (a sua) pretensão, para poder exercer o respectivo meio legal de impugnação”. A doutrina defende que deve ser lido como significando que a falta de decisão administrativa confere ao interessado “a faculdade de lançar mão de tutela adequado à protecção dos seus interesses”.
Isto devesse ao facto que antes da entrada do actual CPTA, o contencioso administrativo era manifestamente baseado nos actos administrativos, sendo que com a inexistência de resposta da Administração equivalia a um “acto de indeferimento ficcionado” para que o particular pudesse usar a acção administrativa de impugnação do acto administrativo.

O Código do Procedimento Administrativo (CPA) prevê o sistema do deferimento tácito.
O CPA ao consagrar expressamente o Princípio da Decisão, ou seja, consagrando o dever de a Administração ter a obrigatoriedade de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos particulares, em especial, sobre os assuntos que lhes disserem directamente respeito ou quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis ou do interesse geral (artigo 9° CPA) abriu caminho para a noção de omissão juridicamente relevante, gerador de efeitos jurídicos (artigo 108º CPA).
Constituem requisitos gerais da omissão juridicamente relevante: a iniciativa do particular; a competência do órgão administrativo interpelado para decidir o assunto; o dever legal de decidir por parte de tal órgão; e o decurso do prazo estabelecido na lei (regra geral de 90 dias).
A atribuição à omissão administrativa de um valor jurídico negativo, dando assim ao particular a possibilidade de interpor recurso de anulação do acto tácito de indeferimento, assume consideravelmente menos importância face à alteração introduzida pela revisão constitucional de 1997 ao nº 4 do art. 268º da Constituição, que veio garantir aos administrados “....a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos....”.
A regra do valor positivo do silêncio da Administração – o denominado deferimento tácito – que vigorava no anterior regime jurídico de obras particulares (artigo 61º do Decreto-Lei 445/91 de 20 de Novembro), de operações de loteamento e de obras de urbanização (artigo 67º do Decreto-lei 448/91 de 29 de Novembro) foi afastada pelo artigo 111º do RJEU. Os mencionados Decretos-leis foram revogados pelo RJEU (artigo 129°).
Da análise dos dispositivos legais do RJUE podemos afirmar que as pretensões referentes aos actos administrativos típicos do procedimento tendente à obtenção de licença administrativa deixaram, com a entrada em vigor do actual RJUE, de poderem ser consideradas como tacitamente deferidas em virtude da mera falta de uma atempada decisão.
No antigo Decreto-Lei 445/91, esse silêncio importa um sentido de decisão. No actual RJEU, o silêncio da Administração tem como consequência jurídica a possibilidade de o interessado poder pedir ao tribunal administrativo que intime a autoridade administrativa a praticar o acto que se mostre devido.
O RJUE veio estabelecer uma inovadora distinção entre os procedimentos que denominou de licenciamento e os de autorização, sendo essa distinção baseada no grau de densidade das regras, localmente aplicáveis, disciplinadoras ou reguladoras das operações urbanísticas a efectuar. A lei distingue entre actos que devem ser praticados pelos órgãos municipais no âmbito do procedimento de licenciamento (artigo 4°, n.º 2 do RJUE), no âmbito do procedimento de autorização (artigo 4°, n.º 2) e os restantes actos (artigo 111º, alíneas a) a c)). Esta distinção entre os tipos de procedimentos, é relevante a vários títulos, mas no caso em concreto do silêncio assume uma relevância ainda mais notável.
Em matéria de silêncio, temos que atender principalmente ao artigo 111º do RJUE. Este artigo regula as consequências legais do silêncio da Administração em matéria urbanística daquele diploma. Ainda que este seja o artigo a que temos que atender principalmente não significa que os artigos seguintes não sejam igualmente importantes, estando efectivamente interligados.
Como já explicamos, o RJUE faz distinção dos actos em causa. Tratando-se de acto que devesse ser praticado por qualquer órgão municipal no âmbito do procedimento de licenciamento, o interessado pode recorrer ao processo regulado no artigo 112º (intimação judicial para a prática de acto legalmente devido). O silêncio da Administração nos casos referidos na alínea a) do artigo 111° não são geradoras de deferimento tácito. Nos casos de licenciamento, o silêncio dá apenas o direito de que o requerente possa requerer ao tribunal administrativo a intimação da autoridade competente para proceder à prática do acto devido. A intimação judicial vale para todas as situações em que, no âmbito de um processo de licenciamento a autoridade administrativa tenha incumprido o seu dever de decisão.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 555/99 podemos observar a opção por apenas dar valor positivo ao silêncio nos casos de “operações sujeitas a mera autorização”.
Por exemplo, se o particular apresenta um projecto de arquitectura em processo de licenciamento, a inércia administrativa não conduz ao deferimento tácito deste projecto (ou ao seu indeferimento tácito), apenas permite que o requerente ou interessado no licenciamento possa instaurar em Tribunal meio contencioso de intimação da autoridade competente para proceder à prática do acto devido.
Tal conclusão não é contrariada pelo regime previsto no artigo 108º do CPA, preceito este no qual se estabelecia a regra do deferimento tácito quanto aos pedidos formulados no âmbito dos processos de licenciamento de obras particulares.
O Decreto-Lei n.º 555/99, segundo a jurisprudência do STA, revogou de modo implícito, e na parte que se relaciona com os agora denominados procedimentos de licenciamento, a conformação genérica constante daquele preceito do CPA.
A maior parte dos processos urbanísticos perante as câmaras municipais caiem no âmbito do procedimento de licenciamento, por terem relevância urbanística.
O meio contencioso de intimação, bem como o deferimento tácito em situações de mera autorização, depende do pressuposto processual de ter decorrido o tempo que a lei concede à Administração para decidir (artigo 111º, proémio, RJUE). As normas do RJUE que prevêem prazos fixos para a prática de actos pelos órgãos municipais no âmbito do procedimento de licenciamento são diversas. A regra geral esta estipulada no artigo 108 n.º 2 CPA. Quando a lei não fixar prazo especial, o prazo de produção do deferimento tácito será de 90 dias a contar da formulação do pedido ou da apresentação do processo para esse efeito.

A revogação do acto tácito
A revogação (implícita) do acto tácito tem grande importância na prática. O STA tem uniformemente decidido que é improcedente, por falta de requisito legal de existencia de deferimento do pedido de licenciamento, o pedido de intimação judicial para passagem de alvará (seja de loteamento, de licenciamento de obras ou de licença de utilização), “sempre que o suposto deferimento tácito (ou expresso) do licenciamento em causa, em que aquele pedido se baseia, tiver sido revogado por acto expresso posterior a que não seja atribuída ilegalidade geradora de nulidade”. Sendo o acto tácito de deferimento nulo, faltará desde logo um acto tácito para servir de base para uma intimação judicial (artigos 112° e 113°, n.º 5 RJUE), sem que seja necessária qualquer revogação. O artigo 68° RJUE determina as situações em que os actos de controlo prévio serão nulos. A nulidade é uma forma de invalidade excepcional, consistindo a regra da anulabilidade (cfr. artigos 133° e 135° CPA). O acto tácito de deferimento do pedido de licença de construção e os outros actos tácitos no âmbito do RJUE que fornecem direitos ao particular são considerados actos constitutivos de direitos. O artigo 73° nº. 1 RJUE determina que a licença ou autorização só pode ser revogada nos termos estabelecidos na lei para os actos constitutivos de direitos.
Podemos, através da análise do diploma, concluir que com a entrada em vigor do novo RJUE as pretensões referentes aos actos administrativos típicos do procedimento tendente à obtenção de licença administrativa deixaram de poderem ser consideradas como tacitamente deferidas em virtude da mera falta de uma atempada decisão da Administração. Também as pretensões referentes aos actos administrativos típicos do procedimento tendente à obtenção de licença administrativa deixaram de poderem ser consideradas como tacitamente deferidas em virtude da mera falta de uma atempada decisão da Administração. Como vimos, os actos constitutivos de direito só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida (na hipótese de ter sido efectivamente interposto recurso contencioso do acto revogado). A entidade tem, quando haja intervenção do Ministério Público, em regra, um ano para a revogação do acto (tácito). Isto demonstra a importância do principio da segurança jurídica e do principio da decisão.
Não podemos deixar em branco a possibilidade de aqui se colocar um grave problema. Como anteriormente já foi dito, a inercia da Administração terá nos casos de deferimento tácito consequências positivas, quanto ao requerente, e poderá ter também negativas relativamente a terceiros. Levado ao extremo, a inércia da Administração pode levar a situações de graves ilegalidades e de necessidade de revogação de actos constitutivos de direitos e subsequente indemnização por danos ao requerente.
O princípio da decisão não pode ser violado por parte da Administração. Têm que ser consideradas as consequências que poderão advir desta violação são facilmente culmatadas pelos requerentes a quem nada foi respondido, através dos meios contenciosos que lhes é legalmente permitido utilizar. Para além do "entupimento" dos tribunais com questões que a Administração deveria ter decidido, também temos que considerar que, quando o silêncio tem valor positivo, poderão ser postos em causa direitos de terceiros interessados. Daí que anteriormente se tenha afirmado que o valor a dar ao silêncio não é unanime na doutrina portuguesa, exactamente porque existirão sempre consequencias da inércia da Administração cujo dever seria tratar das situações concretas e não deixar "à sorte" ou para o tribunal a solução dos litígios.



Renata Simões

Bibliografia:
Professor Vieira de Andrade, "Justiça Administrativa (Lições)", ALmedina, 2009;
Professor Mário Aroso de Almeida, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 2010;
Alexander Rathenau, "O actos de controlo prévio e o silêncio administrativo";
Professor Alves Correia, "Manual de Direito do Urbanismo", volume III.  

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