segunda-feira, 2 de maio de 2011

Os poderes de pronúncia do juiz com a reforma do Contencioso Administrativo

O art.268º/4 da CRP consagra o direito a uma plena e efectiva tutela dos direitos dos particulares. Trata-se de uma norma - chave operante em todo o Contencioso Administrativo, já que proporciona uma verdadeira garantia constitucional de acesso à justiça administrativa. Todos os meios processuais devem partir do princípio contido no art. 268º/4 da CRP, de modo a que cada particular possa reger a sua vida com a garantia que os seus direitos estão efectivamente tutelados e que potenciais agressões aos mesmos são realmente analisadas. Mais do que nunca, a revisão constitucional de 1997 impulsionou visivelmente a garantia de acesso à Justiça Administrativa. Os tribunais administrativos passaram a ser considerados verdadeiros tribunais, passando as suas sentenças a ter o valor daquelas que são proferidas pelos tribunais comuns. Tal facto trouxe uma nova “força” às decisões proferidas pelos tribunais administrativos, bem como à tutela dos direitos dos particulares. Por outro lado, o objectivo de assegurar o direito fundamental de acesso à Justiça Administrativa impulsionou o desenvolvimento do Processo Administrativo, que tem evoluído no sentido de proporcionar meios de fazer corresponder a cada direito de um particular um adequado meio de defesa em juízo, independentemente de se tratar de um processo declarativo ou executivo. O CPTA consagra no seu art.2.º o princípio da tutela judicial efectiva, densificando o art. 268.º/4 da CRP, de modo a possibilitar o direito de obter atempadamente uma decisão judicial favorável. O objectivo é a possibilidade de promoção de uma verdadeira justiça administrativa. Por seu lado, o art.7.º CPTA refere que tal justiça administrativa encerra em si igualmente a ideia de uma justiça material, pelo que o órgão decisor tem o poder de se pronunciar sobre o mérito da pretensão formulada, e não apenas acerca de aspectos formais do litígio.  
O CPTA consagra cinco meios processuais, em matéria administrativa, sendo eles: a acção administrativa comum (art. 37.º e seg.); a acção administrativa especial (art. 46.º e seg.); os processos urgentes (art.º 97.º e seg.); os processos cautelares (art. 112.º e seg.); e o processo executivo (art. 157.º e seg.). Verifica-se que o legislador português consagrou dois diferentes meios processuais principais: a acção administrativa comum e a acção administrativa especial. Cada uma das referidas acções principais contem uma marcha processual específica, embora existam coincidências em alguns pontos, como é o caso da possibilidade da modificação objectiva da instância, por parte do juiz.
O princípio da tutela efectiva proporciona ao juiz uma série de poderes de pronúncia judicial, contendo o art.2.º/2 CPTA uma enumeração exemplificativa dos mesmos. Tal como refere o professor Vasco Pereira da Silva, a lógica contida no referido artigo, e decorrente da evolução do contencioso administrativo, parece ser a de um aumento progressivo dos poderes do juiz a este respeito.
Do ponto de vista dos meios processuais, as alíneas a), b), c), e), f), g), correspondem à acção administrativa comum; as alíneas d), h), i), j), correspondem à acção administrativa especial; a alínea i) corresponde aos processos urgentes; e a alínea m) corresponde aos meios cautelares.
A lógica actual permite depreender que a qualificação dos efeitos da sentença proferida pelo tribunal administrativo depende do pedido formulado, pelo que as acções administrativas (comum e especial) podem dar origem tanto a sentenças de simples apreciação, como a sentenças de anulação e de condenação. Conclui-se também que os poderes de pronúncia dos tribunais administrativos, no seguimento da reforma do Contencioso Administrativo, não são inferiores aos de qualquer outro tribunal. Já não se verificam limitações decorrentes do circunstancialismo histórico que foi berço do contencioso administrativo. A evolução do modelo de justiça administrativa levou à consagração de um plena jurisdição dos tribunais administrativos, bem como ao reforço dos poderes de pronúncia dos juízes no plano declarativo, bem como dos poderes de anulação e de condenação (cfr: art.67.º e seg; art. 37.º/2, al. c); art.77.º; art. 95/3; art. 2.º/1; art.º3/3; art.3.º/2; art. 44.º; art.º71/2; art.109.º/3 CPTA).
Hoje em dia, o processo administrativo não se ocupa apenas do controlo da mera legalidade de actos. A modernização do contencioso administrativo tem apelado a uma maior sensibilidade da maneira como decorre o processo administrativo. A ideia de que “julgar a administração é ainda administrar” está definitivamente ultrapassada. Apesar de as decisões administrativas serem uma função a cargo da Administração Pública, os tribunais administrativos têm actualmente uma margem clara de poderes de pronúncia sobre o mérito das decisões, como forma de exercício do seu poder de fiscalização. A discricionariedade que caracteriza a actuação administrativa com vista à promoção do interesse público tem como limite o sistema normativo existente, bem como os princípios orientadores de toda a ordem jurídica e da Administração Pública em particular. O art.71.º/2 CPTA é claro ao permitir que os tribunais possam estabelecer os parâmetros de actuação à Administração na prática do acto devido. Outro ponto relacionado com o aumento dos poderes de pronúncia do juiz no processo administrativo é a possibilidade de uso da generalidade dos meios de prova no contencioso administrativo, decorrente também ela da modernização do mesmo.
De resto, o art.3.ºCPTA é óbvio quanto à possibilidade (ainda que limitada) do controlo da oportunidade das decisões administrativas, por parte dos tribunais administrativos. O art. 3.º/1 estabelece uma regra geral de delimitação da competência dos tribunais administrativos, circunscrevendo-a no controlo do cumprimento do direito pela Administração Pública, que se torna mais delicada e questões que envolvem decisões discricionárias por parte da mesma. Contudo, uma vez analisado o número 2 do art.3.º, verifica-se que os tribunais administrativos têm competência para estabelecer sanções pecuniárias compulsórias, tanto no processo executivo como nos processos declarativo e cautelar (art. 169.º; art. 66.º/3; art.127.º/2). Trata-se de uma excepção parcial à regra contida no art. 3.º/1, já que se permite que o tribunal vá além da verificação do cumprimento do direito por parte da Administração Pública, tendo igualmente a possibilidade de analisar (ainda que limitadamente) questões de oportunidade nomeadamente a determinação do momento de cumprimento da sentença, em fase declarativa. Também o art. 3.º/3 reflecte a margem de actuação que está ao dispor do juiz, em sede de processo administrativo. Permite a referida disposição que é permitido ao juiz, em processo executivo, a possibilidade de emissão de sentenças substitutivas, desde que esteja em causa o exercício de poderes vinculados. A intervenção substitutiva do tribunal é apenas possível em situações de não execução voluntária da sentença declarativa por parte da autoridade administrativa, e desde que esteja em causa o exercício de poderes vinculados. Assim, embora tal possibilidade de actuação por parte do juiz torne mais ténue a linha divisória entre Administração e Justiça, não põe de todo em causa o princípio de divisão de poderes.
A lei admite inclusive, ainda que a título excepcional, em ambas as acções principais, a possibilidade de modificação objectiva da instância, por parte do juiz. Trata-se da possibilidade de o juiz, num determinado processo dirigido contra a administração, julgar improcedente o pedido, apesar de a razão estar do lado do particular, e optar pela fixação de uma indemnização ao lesado. As razões de tal decisão provêm da situações de impossibilidade absoluta da assistir ao pedido ou de um prejuízo excepcional para o interesse público decorrente do potencial cumprimento do dever a que a entidade administrativa deveria ter sido condenada.
                Trata-se de um expediente colocado à disposição do juiz que revela a magnitude dos poderes que assistem ao mesmo em matéria de contencioso administrativo, nos dias de hoje. Tais poderes apenas cumprem a sua função de assegurar a fluidez da justiça administrativa se o juiz temperar as suas decisões com o bom senso e coerência que lhe são exigidos, de modo a assistir aos pedidos dos particulares sem lesar gravosamente o bem comum e a estabilidade social.
                O poder de modificação objectiva da instância por parte do juiz tem sido objecto de críticas por parte da doutrina. Os argumentos utilizados são o excesso de poder colocado à disposição do juiz através da vasta actuação processual que lhe é permitida por lei, bem como a diminuição de direitos dos particulares. A meu ver, tais argumentos devem ser ponderados. A colocação de poderes desta natureza ao alcance do juiz por parte do legislador tem ínsita a ideia de que as acções do primeiro são guiadas exclusivamente pelo conhecimento e pela razão, e que o juiz é conduzido pela coerência e por uma especial sensibilidade de detecção do equilíbrio entre a salvaguarda dos direitos dos particulares e o bem comum que deve envolver a sociedade em todas as decisões que profere. Nesta lógica, a discricionariedade colocada à disposição do juiz, no que diz respeito à possibilidade de reconhecimento antecipada existência de causas legítimas de inexecução da sentença, é de todo uma mais-valia em comparação com a estática das leis. Por outro lado, é compreensível uma decisão de improcedência nesta situação, mesmo quando o pedido do particular é legítimo. A garantia da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos cidadãos legalmente consagrada, primeiro de acesso ao direito e aos tribunais, e depois de obtenção de uma decisão jurisdicional em prazo razoável e de efectividade das sentenças proferidas, não pode ir tão longe que permita que uma pretensão apresentada por um particular, ainda que legitima, ponha especialmente em causa a estabilidade do tecido social. Apesar da reconhecida fragilidade da posição do particular em relação a uma entidade dotada de poderes públicos, uma assistência total ao pedido do primeiro, sempre que colocasse em jogo gravemente todo o meio envolvente, adulteraria o ideal de justiça administrativa que se espera das decisões proferidas pelo tribunal. A alternativa deve ser o estabelecimento uma indemnização ou o pedido autónomo de reparação de danos.
 O reforço dos poderes de pronúncia dos juízes no plano declarativo, decorrente da plena jurisdição dos tribunais administrativos alcançada com a reforma do contencioso administrativo trata-se de um meio idóneo e necessário para a obtenção da pretendida tutela judicial efectiva dos cidadãos, consagrada no art. 268.º/4 CRP e reafirmada pelo art.2.º/2 CPTA no que diz respeito à accionabilidade das actividades administrativas lesivas para os particulares. Por último, não pode perder-se de vista que a tutela judicial efectiva, no que diz respeito a matérias administrativas, não se satisfaz com a salvaguarda dos direitos dos cidadãos particulares, estendendo-se à salvaguarda do interesse público e qualidade de vida colectiva, que se traduz na existência de bens comuns e valores constitucionalmente protegidos, tais como o ambiente, a saúde pública ou o património cultural. Só desta forma se atinge a desejada justiça administrativa.
Pedro Catarino turma A/4

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