quarta-feira, 25 de maio de 2011

Os poderes de pronúncia do Tribunal no âmbito
da acção de condenação no acto legalmente devido

            Os arts. 66º a 71º do CPTA regulam a acção de condenação no acto devido, estando os poderes de pronúncia do Tribunal previstos no art. 71º.
            Este pedido tem como objecto a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo, o «acto devido», que, na perspectiva do autor, tenha sido ilegalmente omitido ou recusado, ou que tenha sido praticado mas não satisfaça ou não satisfaça integralmente a sua pretensão.
            Na Orientação para a Reforma do Ministério da Justiça dizia-se que o Tribunal deve poder «determinar qual o conteúdo do acto no caso de poderes vinculados ou quando da análise do caso concreto e no âmbito de um poder legalmente considerado discricionário resulte da apreciação do caso concreto apenas uma solução legalmente viável (…); definir o conteúdo dos aspectos vinculados do acto a adoptar no âmbito de um poder discricionário.»
            A Exposição de Motivos, por sua vez, determinava que perante uma situação de recusa pela Administração do acto solicitado pelo particular, «o tribunal não deve limitar-se a verificar se a recusa foi ilegal mas deve pronunciar-se sobre o bem fundado da pretensão do interessado, na exacta medida em que tal seja possível, sem invadir o espaço próprio da discricionariedade administrativa» e, «sempre que dê razão ao autor, o tribunal não anule ou declare nula a recusa, mas imponha a pratica de um acto administrativo, determinando o seu conteúdo ou, no caso de não o poder fazer, explicitando as vinculações a observar pela Administração na sua emissão. A condenação proferida tem, só por si, o alcance de eliminar da ordem jurídica o indeferimento porventura referido».
Vejamos quais os limites decorrentes da separação de poderes, e a sua relação com a decisão administrativa.
            No art. 3º, nº 1 CPTA determina-se que os Tribunais não podem apreciar a conveniência ou oportunidade da actuação da Administração. Assim, o Tribunal só poderá agir no espaço de vinculação da Administração, se a solução resultar da conjugação da normas e princípios vigentes, cabendo nos poderes do julgador a explicitação de tais vinculações, determinando, assim, o acto administrativo a praticar. Este é o limite relativamente às sentenças proferidas no âmbito da acção de condenação no acto legalmente devido que se prende com o princípio de separação de poderes, muito discutido pela doutrina.
            Tal como refere PAULA BARBOSA, este princípio não impede a condenação da Administração na prática do acto legalmente devido. Trata-se, antes, de determinar o que a lei impõe, não contendendo com a área de discricionariedade administrativa. O tribunal não pode tomar decisões pela Administração, tendo esta natureza discricionária, mas poderá determinar as áreas de vinculação dessa vinculação dessa decisão.
            RUI MEDEIROS considera que este princípio «visa garantir uma margem de liberdade da Administração, quer face aos tribunais, quer face ao próprio legislador. Em relação ao Tribunal, só no âmbito da discricionariedade é que juiz não pode intervir, nem sequer para anular o acto administrativo. Pelo contrário, no plano da legalidade, não há qualquer obstáculo a que o juiz condene a Administração. Se a discricionariedade estiver em causa, o juiz não pode condenar a Administração no que há-de fazer, mas apenas no quadro da sua actuação vinculada à lei».
            Mas a discricionariedade também não significa arbítrio, na medida em que a decisão deve respeitar o fim que a actuação da Administração deve prosseguir, o interesse público, para além dos demais princípios gerais de Direito, como a igualdade e proporcionalidade.
            PAULA BARBOSA defende que o Tribunal pode estabelecer uma censura jurídica à actuação da Administração, quando esta, no exercício de tais poderes, viole a legalidade, sem prejuízo do facto de o Tribunal não poder ingerir-se na esfera própria da Administração, correspondente ao exercício dos seus poderes discricionários, em obediência ao princípio de separação e interdependência de poderes.
            MÁRIO TORRES refere que o tribunal deve poder avaliar da justiça da decisão administrativa, mesmo sendo esta discricionária.
            VIEIRA DE ANDRADE caracterizava jurisdição administrativa como uma «jurisdição obrigatória e plena, no sentido de que os tribunais administrativos se encontram imperativamente consagrados na Constituição, constituindo uma ordem judicial paralela à dos tribunais comuns, e dispõem de poderes jurisdicionais mais amplos (de condenação e injunção), que têm apenas como limites funcionais o núcleo do juízo discricionário e os actos internos da Administração». E ainda « obriga hoje a que o legislador reconheça ao juiz administrativo todos os poderes incluindo obviamente os de condenação e injunção, sempre que esteja em causa a legalidade ou juridicidade da actuação administrativa, ou seja, os limites funcionais impostos pelo princípio de divisão de poderes reduzem-se à sua dimensão própria, proibindo ao juiz apenas que exerça a função administrativa, isto é, que se substitua à Administração no núcleo do juízo discricionário».
            COLAÇO ANTUNES refere que o tribunal deve funcionar «como garantia de juridicidade do agir administrativo na prossecução do interesse público».
            MARCELO REBELO DE SOUSA entende que «face a uma aérea vinculada, o tribunal poderá determinar o conteúdo do acto administrativo; já perante matéria discricionária, aquele não poderá substituir-se à Administração, mas unicamente reconhecer o direito subjectivo em causa».
            JOÃO CAUPERS refere que «deixa de ser possível entender que o juiz administrativo não pode impor à Administração a adopção de comportamentos, por ser violação do princípio de separação de poderes. No entanto, esta acção de condenação não é uma habilitação geral para o tribunal se substituir à Administração no exercício da função administrativa, até porque o julgador não detém nem os meios, nem os conhecimentos técnicos, nem as informações necessárias para uma boa administração».

            Mas afinal, que tipo de pronúncia está em causa na acção de condenação à pratica do acto legalmente devido? Declarativa, i. e., declarando que a Administração está obrigada a agir mas não a condenando a fazê-lo (reconhecimento da obrigação); ou condenatória, condenando a Administração a agir; ou substitutiva, agindo o Tribunal em vez da Administração?
No ordenamento jurídico português, deve o Tribunal começar por avaliar, numa primeira fase, qual o tipo de solução em causa, se vinculada, se discricionária. A esta deverá seguir-se a reflexão sobre o caso material concreto (o que pode determinar que aquilo que era, à partida, discricionário, já não o é no caso concreto). A primeira condiciona, assim, a segunda fase, pois determina a amplitude de poderes de pronúncia do tribunal. O tipo de pronúncia a emitir pelo julgador dependerá do tipo de dados normativos e circunstâncias aplicáveis ao caso concreto. Assim podemos ter:

- Sentença condenatória simples: o Tribunal limitar-se-á a condenar a Administração a praticar um qualquer acto administrativo, sem determinação do seu conteúdo, como resulta do confronto entre o nº1 e 2 do art. 71º. Aplicar-se-á em casos de inércia ou omissão da Administração, quando esta não dá resposta à pretensão que lhe foi dirigida, quando não haja um substrato material de actuação da Administração que possa ser objecto de análise por parte do julgador; e em caso de recusa de apreciação do requerimento dirigido pelo particular à Administração, a situação da Administração emitir uma «recusa liminar» (invocando questões prévias que a impedem de analisar o mérito da pretensão). Não há, nestes dois casos, uma avaliação material do caso concreto pela Administração, ou seja, qualquer valoração administrativa feita. No entanto, o julgador deverá procurar produzir, sempre que possível, uma decisão de mérito, não podendo remeter meramente o assunto para a Administração (art. 71º, nº 1, in fine). O Tribunal acabará, assim, por avaliar da legalidade da inércia ou omissão, e sendo o caso, condenar a Administração a agir, a prática do acto devido, sem determinação do tipo de acto concreto em causa.
- Sentença-marco ou sentença indicativa: são as sentenças condenatórias na prática de um acto com determinados parâmetros, potencialmente aplicáveis quando estejam em causa áreas de actuação por natureza discricionárias, não sendo possível operar a redução da discricionariedade a zero. (art. 71º, nº 2 in fine). São fixados, pelo julgador, critérios quanto aos aspectos vinculados do acto, determinando o que é legal e o que não o é, ficando, em consequência, excluídas certas formas de actuação da Administração, não podendo esta repetir a ilegalidade cometida. O Tribunal condena, assim, a Administração na prática do acto a agir, mas não num determinado, indicando possíveis áreas de vinculação ou limites à discricionariedade.
- Sentença cominatória plena: sentença que condena a Administração na prática de um acto administrativo com um conteúdo definido, num acto determinado. Tal acontece quando estejamos perante actos administrativos de natureza vinculada quanto ao seu conteúdo e verificação, ou actos que, sendo discricionários, vêem, no caso concreto, reduzida a zero essa discricionariedade, por se concluir que foi ultrapassada essa discricionariedade, só sendo possível, afinal, uma única solução, acto administrativo. A redução da discricionariedade a zero acontecerá sempre que várias soluções sejam abstractamente possíveis, mas face às circunstâncias de facto do caso concreto, só uma corresponde ao acto devido. Tal resulta da conjugação do art. 71º, nº 1 in fine com o seu nº 2, a contrario.

Bibliografia
. Almeida, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra.
. Amaral, Diogo Freitas; Almeida, Mário Aroso de, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, 2002
. Andrade, Vieira de, A justiça administrativa, 2009
. Barbosa, Paula, Acção de condenação no acto administrativo legalmente devido, AAFDL, 2007
. Caupers, João, Imposições à Administração Pública, CJA, 1999


Filipa Correia Henriques

nº 17275

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