quinta-feira, 26 de maio de 2011

Parecer Ministério Público


MINISTÉRIO PÚBLICO
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Parecer do Ministério Público n.º 209/2011 

Exmos. Juízes do Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa,
O Ministério Público vem, ao abrigo do art. 85.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e art. 219º/1 da CRP, emitir parecer sobre o processo nº 4459/11.3YYLSB, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
Chegada ao Supremo Tribunal Administrativo a petição inicial que deu início ao presente processo, foi fornecida cópia dessa petição e dos documentos que a instruem a este Ministério Público, nos termos do art. 85.º/1, CPTA, bem como das contestações da entidade demandada.
Ao longo da audiência, o MP depreendeu em relação aos quesitos da matéria da base instrutória, que todos eles se provam com respostas pela negativa, e toma posição:
I – Da reunião do Conselho de Ministros
O MP entende que não houve qualquer reunião do Conselho de Ministros, quer no dia três, quer no dia quatro de Abril, por prova testemunhal do senhor doutor Pedro Mendonça, Ministro das Obras Públicas, que na sessão de audiência e julgamento afirma não ter tido conhecimento da realização, nas datas acima indicadas, de qualquer reunião em Conselho de Ministros.
Ao abrigo do art. 197.º/1 al. c) CRP dá-se competência ao Governo, no exercício das suas funções políticas, para aprovar acordos internacionais, cuja aprovação não seja da competência absoluta da Assembleia da República. Verifica-se, nos termos do art. 165.º/1 al. b) CRP que a matéria de direitos, liberdades e garantias, pode ser regulada pelo Governo mediante autorização da AR conforme o n.º 2 do mesmo artigo.
A contestação afirma que a redução salarial foi efectivada por DC-Lei n.º 143/2011 de 3 de Março, no seguimento da Lei de Autorização Legislativa n.º 105/2011 de 9 de Fevereiro, ao abrigo do art. 165/1 al. b) e n.º 2 CRP.
Nestes moldes, entende o MP, em conformidade com o referido na contestação, que a matéria em causa no litígio se enquadra no âmbito dos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP, estando especialmente em causa o art. 18.º da mesma.
Assim sendo, poderia o órgão executivo legitimamente legislar sobre a referida matéria, nos termos do art. 156.º/1 al. b), mediante autorização da AR. Conclui-se, deste modo, que o Governo tinha competência para aprovar o Acordo internacional com a TROIKA, sob a forma de Decreto-lei, ao abrigo dos art. 197.º/1 al.c) e n.º2 CRP, excluindo-se consequentemente a possibilidade de o acto de redução dos salários revestir a forma de Portaria, tal como é alegado no art. 6.º PI.
II – Da suspensão
O Autor, nos pontos 13º a 16º da sua P.I. afirma que não houve lugar a nenhum tipo de suspensão das obras de construção do aeroporto, juntando as fotografias (Doc. 4) tiradas pelo mesmo, em seguimento de uma deslocalização do mesmo ao local das obras, fazendo esta questão parte da matéria assente (alínea K’ da matéria assente do despacho saneador).
Foi também ouvido Francisco Espertalhão que é filho do Autor e Administrador da Mota-Tacho Gentil, e que testemunhou que as obras continuavam dentro da normalidade, tendo tido apenas indicações para que houvesse uma contenção de custos e a paralisação das obras apenas durante uma semana.
Já na contestação do Réu, vem este dizer, no artº 4, que efectivamente houve continuidade da obra, embora esta seja apenas parcial.
Apresenta-nos o Doc. 3 com o plano de execução parcial e com as respectivas alterações em sede de custos. Embora os custos sejam inferiores, o MP retira deste plano que a construção será levada até ao seu fim, embora que por maior período de tempo.
Em resultado das alegações proferidas pelo Ministro das Obras, na sessão de julgamento, o MP apurou que ao contrário do que é afirmado na contestação, não ocorreu suspensão das obras do novo aeroporto (nem parcial, nem total). O Ministro refere que ocorreu um prolongamento da execução do projecto original, ocorrendo por isso uma “diminuição do projecto”, mas mantendo o mesmo número de trabalhadores, sujeitos à mesma carga horária. O Ministro referiu ainda que “os custos são os mesmos”. Questionamo-nos como é que é isso possível, na medida em que:
 - o projecto original foi pensado para uma execução total da obra, nos prazos inicialmente previstos. Se o projecto foi diminuído, então já não poderá ser o projecto original; nesse sentido, questionamos o porquê de não terem sido realizados novos projectos de engenharia, arquitectura, entre outros. Ainda mais tendo o próprio Ministro dito também que fiscalizou em pormenor os trabalhos na obra, sendo ele um especializado em engenharia civil.
 - mais incrível é o facto de existir uma diminuição do projecto mantendo  o mesmo número de trabalhadores, com a mesma carga horária.
 - Se os custos são os mesmos, tal como afirma o Ministro, então o MP não entende qual o objectivo da referida diminuição do projecto, quando o objectivo da Troika é a poupança do Estado português, o que não poderá ocorrer nos termos supracitados
Ao que parece, no lugar de uma suposta suspensão parcial, o que encontramos é uma mera extensão dos prazos de conclusão da obra, seguindo um projecto desenquadrado e desactualizado com a necessidade de uma redução da obra, mantendo no entanto exactamente os mesmos trabalhadores. Mais se conclui que estas alterações não tiveram expressão nos custos, uma vez que nas palavras do Ministro, estes não se alteraram.
Analisando as declarações proferidas por Manuel Costa, representante da Troika, verifica-se que também ele proferiu ter ocorrido a suspensão parcial da obra. Mais adianta que consistiu numa suspensão de 93% e numa execução de apenas 7%. Esta execução de 7% é destinada a que o aeroporto tenha o mínimo de condições necessárias para o seu funcionamento adequado. Ora, o MP tem dúvidas sobre o que será uma execução do projecto do aeroporto em 7% pois ou o projecto integral continha feições megalómanas, ou caso contrário questionamos se é admissível uma construção de um novo aeroporto com base em 7% do projecto original (a questão é mesmo: que tipo de aeroporto será esse?).
Pronunciamo-nos assim por verificar que na realidade, tal como é invocado pelo Autor na sua Petição Inicial, não ocorreu nenhuma suspensão, muito menos parcial e os trabalhos prosseguem. 
III – Da Cláusula penal
Tentando justificar a opção pela não suspensão total das obras de construção do aeroporto, o réu alega a existência de uma cláusula penal, no contrato de concessão de obras públicas, celebrado com a empresa Mota-Tacho gentil, a qual nos é indicada pelo Doc. 1 da contestação, na sua cláusula 28ª.
Esta cláusula determina que são aplicáveis os montantes e os efeitos do artigo anterior em caso de suspensão total da construção da obra e no caso de resolução do contrato, sendo que a cláusula 27ª impõe o pagamento de 1000.000.000 de euros em caso de incumprimento.
Estamos, por isso, perante uma cláusula penal de valor elevadíssimo, que acarretaria um dano patrimonial enorme nos cofres do Estado.
No entanto, nenhuma contrapartida foi estipulada no caso de haver uma suspensão parcial pelo que o MP congratula o Ministro, enquanto representante do Estado português na negociação do contrato com a Mota Gentil, por ter conseguido que nenhuma contrapartida ficasse estipulada neste caso no contrato a respeito de uma suspensão parcial ou incumprimento parcial do contrato.
Ou seja, em caso de suspensão total existe uma cláusula de 1000 milhões, em caso de suspensão parcial existe uma cláusula de 0 (entenda-se: uma cláusula inexistente). Mais uma vez, o MP questiona o porquê desta situação achando duvidosa esta diferença de tratamento entre os dois tipos de suspensão. 
IV – Dos Salários
Apesar da audiência ter levado claramente outro rumo, visto que o que foi debatido foi a questão das obras no Novo Aeroporto de Lisboa em detrimento dos salários que também era uma das pretensões do autor, o MP como defensor da legalidade, vem tomar parte, com base no parecer do advogado Garcia Pereira, que nos ajuda a enunciar o problema da seguinte forma:
Na eventualidade de terem sido observados os mecanismos legais para proceder à redução salarial – em 10% - dos funcionários públicos, essa medida é inconstitucional.
A remuneração é a contrapartida pela qual os trabalhadores, neste caso, funcionários públicos, exercem a actividade ao seu empregador. É pois, uma componente própria e caracterizadora da relação laboral, na qual deve o trabalhador depositar confiança, assegurada pelo princípio da integralidade e a da não redutibilidade remuneratória. Uma redução de 10% “do montante salarial nos empregos públicos” constitui, sem margem para equívocos, uma redução efectiva e significativa.
Como tem sido seguido pela Procuradoria Geral da República, no Parecer 16/92, “a garantia da integralidade remuneratória resulta, porém, não de qualquer autónomo princípio de irredutibilidade (inscrito ao nível fundamental), ou mesmo de protecção de 'direitos adquiridos' - como se referiu, um princípio vago, abstracto, sem suficiente densidade normativa -, mas da circunstância de uma modificação estatutária, com semelhante conteúdo, traduzir uma violação intolerável, inadmissível e demasiado acentuada do princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de Direito democrático.”
O que se revela na medida é uma modificação unilateral do estatuto típico entre a Administração Pública e os seus trabalhadores (funcionários públicos), desrespeitando, assim, o princípio da intangibilidade remuneratória, e, por consequência, o princípio de confiança ínsito ao Estado de Direito, consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Sendo o Estado uma pessoa de bem e devendo acautelar-se as legítimas expectativas das pessoas que com ele se relacionam – no caso, funcionários públicos – uma redução salarial naquele montante constitui uma evidente inconstitucionalidade material, por violação do art. 2º e do art. 59º nº 1 alínea a) CRP que consagra, constitucionalmente, o direito fundamental ao salário.
Este último, enquanto direito fundamental, é passível, à semelhança de outras liberdades e garantias, de ser restrito ou suspenso nos casos previstos na CRP – é o princípio da proporcionalidade vertido no art. 18º nº 2 da CRP. Ora, essas situações excepcionais a que se alude, aqui não se verificam: não se está nem em estado de sítio, nem em estado de emergência, art. 19º nº 1 da CRP. Pelo que, a inconstitucionalidade também aqui se torna evidente.
Pode-se invocar a situação de excepcionalidade económica que levou a que fosse celebrado um Standby-Agreement, um Memorando de entendimento entre Portugal e O Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia. Mas tal argumento parece improcedente.
E parece improcedente porque não se mostra que a descida dos salários – a título definitivo e não enquanto a excepcionalidade da situação persistir – seja a única medida que permitiria a contenção de custos, nomeadamente, do défice público. Outras medidas poderiam ser adoptadas, para a prossecução do mesmo objectivo, por forma a que não se ultrapassasse o intolerável desrespeito e frustração de expectativas com que os funcionários públicos legitimamente não contavam nem poderiam contar.
Mais: a diminuição salarial, dirigida apenas aos funcionários públicos, em nome de um objectivo que a todos beneficiará – diminuição gastos públicos de forma a corrigir problemas estruturais da economia portuguesa, como contrapartida pelo empréstimo a ser concedido pela Troika – corresponde, na opinião dos Professores PAULO OTERO e do advogado GARCIA PEREIRA, a uma violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP. PAULO OETERO, em Parecer solicitado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público em Novembro de 2010, defendeu que "a uns é exigido um sacrifício que, em condições de igualdade remuneratória mensal, a outros não é exigido, sem que essa diferenciação de tratamento tenha qualquer justificação aceitável, sabendo-se ainda, por outro lado, que o benefício da redução do défice orçamental a todos vai aproveitar.". Escreveu o Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa que, não podendo o Estado cortar directamente no salário dos trabalhadores de empresas privadas, poderia compensá-lo através de medidas fiscais. Não o fazendo, está-se, na sua opinião (e a que aderimos) a adoptar “uma solução legal que, envolvendo uma iníqua repartição de encargos públicos, fazendo, arbitrariamente, uns pagar para o benefício de todos, gera uma desigualdade que lesa o princípio da justiça".
Por tudo, ainda que não haja ilegalidade na adopção da medida, a mesma padece de inconstitucionalidades materiais várias, por violação do princípio da confiança, ínsito ao Estado de Direito, afectando as legítimas expectativas dos trabalhadores – art. 2º CRP , por violação do direito fundamental do direito ao salário (art. 59º nº 1 alínea a) CRP, que não pode ser restringido, por não se estar em estado de sítio nem em estado de emergência (violação do princípio da proporcionalidade: art. 18º nº 2 e 19º nº 1 CRP) , por violação do princípio da igualdade e da justiça, por só se aplicar aos trabalhadores públicos - art. 13º CRP - dado que todos os cidadãos beneficiam da finalidade que levou a República Portuguesa a celebrar um Standby-Agreement.
V – Questão residual – Imunidade parlamentar do Ministro
Da audiência e julgamento resulta que o Ministro das Obras Públicas testemunhou a favor do réu sem que tivessem levantado a sua imunidade parlamentar, facto esse que não poderia ter ocorrido, tendo em atenção que os magistrados do STA só podem   convalidar o arrolamento do Ministro como testemunha se forem autorizados  pela Assembleia da República. De acordo com interpretação das normas resulta uma aplicação analógica do Estatuto dos Deputados, no seu artigo 11°/2, ao Ministro oferecendo assim a ambos a mesma garantia processual. Isto prende-se com uma razão  óbvia que se consubstancia no seguinte: normalmente o Ministro é antes um deputado eleito em algum circulo eleitoral do país, por maioria de razão não pode ter o estatuto processual inferior ao dos Deputados, até porque têm uma responsabilidade acrescida em relação aos últimos, portanto, se a imunidade começa para os Deputados com o seu arrolamento como testemunha, impõe-se  que ela comece também nesse momento para o Ministro. É pertinente elucidar que  a nova redacção dada ao art.157º/2 CRP pela lei constitucional nº1/97, de 20 Setembro elevou a categoria de imunidade parlamentar, o que já antes se configurava na legislação ordinária como um direito dos Deputados.
Importa  salientar  também, apesar de não ser o cerne da questão, não é por acaso que o Ministro, quem diz um Ministro, diz Deputados, beneficiam duma protecção legal por não poderem ser responsabilizados penal e civilmente pelos votos e opiniões que emitam no exercício das suas funções, exceptuando os casos de abuso de poder.
Os juízes não podem  deixar proceder uma irregularidade, aliás afirmaram não ter emitido o pedido de levantamento da imunidade parlamentar do Ministro. Esse facto traduz-se numa violação das formalidades do processo, violação essa que pode dar aso a uma inconstitucionalidade por violação do art.157º/2 CRP. Acrescendo a isso a violação da norma de valor reforçado, artigo 254°/1 e 2 e ainda a violação dos artigos 11 e 21/1 e 3 do Estatuto dos Deputados, está-se a referir o Regimento da Assembleia da República que serviria de base material  para averiguar se existe condição para  proceder do pedido do levantamento da imunidade parlamentar.
Questiona-se, se os três vícios serão invocados cumulativamente ou se a inconstitucionalidade  consumirá os dois outros? Em resposta a esta questão, importa não hierarquizar os vícios, antes pelo contrário, serão cumuláveis para fundamentar a irregularidade do processo e consequentemente invalidar a prova testemunhal apresentada pelo Ministro se se concluir não oportuno corrigir esta irregularidade através da convocação da parte que arrolou a testemunha para suscitar o levantamento da imunidade parlamentar. Como é óbvio, não haveria esta possibilidade e nem sequer os juízes tiveram essa situação em conta. Ora o Ministério Público na qualidade de defensor da legalidade pretende repô-la, solicitando a invalidade das declarações prestadas em forma de prova testemunhal pelo ministro, que segundo os argumentos supra sufragados não consubstanciam valor probatório nenhum art.392º CC  e 396º CC.



Do retirado da audiência e do exposto supra, o MP requer:
 - a condenação do Estado/Administração por adopção de medida  inconstitucional - o que obriga a reparar a lesão.
 
 - dá-se nota do incumprimento do Estado para com o memorando da  

Troika, mas seria algo a ser sustentado em acusação autónoma, posterior, dado que nada releva para o autor - João Á Rasquinha, na  

medida em que dissemos não existir relação directa entre redução  

salários e suspensão novo aeroporto.
 
Cumpra-se a legalidade,



Os Procuradores-Gerais Adjuntos,
 Bernardo Barreiros –
 Ivanilde Pereira –
 Pedro Catarino –
João Gonçalves –
 Johnny Pereira –
 Ricardo Vicente –
 Sofia Assunção –

(Nota: o mesmo Parecer foi enviado para o e-mail da subturma 4, às 3h26min de hoje)

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