sábado, 7 de maio de 2011

Problemática acerca da necessidade de recurso hierárquico necessário em matéria de impugnação contenciosa de actos administrativos

O sistema de justiça administrativa tem evoluído no sentido de um maior aperfeiçoamento das garantias das posições jurídicas substantivas dos cidadãos. A CRP, nomeadamente através da introdução do seu art. 268.º tal como o conhecemos hoje, precedeu a modificação empreendida pelo legislador ordinário, de modo a acompanhar a evolução da sociedade e a maior tutela exigida por parte dos cidadãos particulares no que toca à manutenção da integridade das suas esferas jurídicas. Tal modificação deu-se em 2002/04, culminando na reforma do Contencioso Administrativo.
Apesar de a tutela dos direitos e interesses dos particulares ter a sua base na CRP, dando ênfase a uma inclinação predominantemente subjectivista do actual contencioso administrativo, não deve considerar-se que a Lei Fundamental consagra um modelo estritamente subjectivista de justiça administrativa. Uma vez respeitados os pressupostos consagrados no art. 268.º da CRP, especialmente a tutela efectiva dos direitos dos particulares, tem o legislador ordinário discricionariedade para concretizar o modelo processual de justiça administrativa pretendido.
A reforma do Contencioso Administrativo trouxe profundas alterações ao modo de encarar o mesmo. Estabeleceu a primeira um modelo tendencialmente subjectivista, fixando a ideia de processo administrativo enquanto processo de partes e alargando os poderes processuais do juiz dentro do mesmo. Alteraram-se profundamente aspectos relacionados com o âmbito da justiça administrativa. Hoje em dia é atribuída aos tribunais administrativos a competência para administrar justiça em litígios resultantes de relações jurídicas administrativas (art. 1.º e 4.º ETAF). O art. 2.º do CPTA consagra o princípio da tutela jurisdicional efectiva, concretizando a tendência de efectividade de tutela das posições jurídicas dos particulares. O art. 2.º/2 permite inclusive, enquanto possível pretensão legítima por parte dos particulares, a condenação à prática do acto administrativo devido, a condenação à não emissão de actos administrativos, a declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos e a resolução de litígios entre privados e entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública.
A referida reforma trouxe igualmente consigo a reorganização dos meios processuais através da introdução de duas formas processuais principais: a acção administrativa comum e a acção administrativa especial. Tal como refere o professor Vasco Pereira da Silva, a acção administrativa especial é um meio processual principal do contencioso administrativo, através do qual “são tuteláveis alguns dos mais importantes direitos subjectivos das relações jurídicas administrativas.” O art. 46.º/2 CPTA elenca uma série de pedidos principais legitimadores da acção administrativa especial.
A acção de impugnação de actos administrativos trata-se de uma subespécie dentro da acção administrativa especial. Consagrada no art. 50.º e seg. do CPTA, pode afirmar-se em termos genéricos que a impugnação de actos administrativos tem como função o controlo da validade dos mesmos. Refere o art. 51.º/1 que são impugnáveis actos administrativos com eficácia externa. O recurso à anulação deixou de ser considerado o “meio normal do contencioso administrativo”, nas palavras do professor Vieira de Andrade, passando a ter o nome de impugnação de actos e passando a constituir um dos pedidos legitimadores da existência de acção administrativa especial.
O conceito processual de acto administrativo não coincide com o conceito de acto administrativo do art. 120.º do CPA. De facto, dentro do contencioso administrativo, não é requisito do acto administrativo impugnável a qualidade administrativa do seu autor (art. 51.º/2 CPTA). É necessário, por outro lado, que a decisão administrativa seja detentora de eficácia externa para que se possa considerar a mesma um acto administrativo impugnável (art. 51.º/1). Refere o professor Vieira de Andrade que os actos administrativos com eficácia externa são aqueles que “produzam ou constituam efeitos nas relações jurídicas administrativas externas independentemente da respectiva eficácia concreta.”
Menos clara é a eventual necessidade da prévia utilização, por parte do impugnante, de vias de impugnação administrativa antes de proceder à impugnação contenciosa de actos administrativos. Discute-se se existe dentro da ordem jurídica o requisito de definibilidade vertical do acto administrativo impugnável, ou seja, se é obrigatória a interposição de recurso hierárquico necessário, prévia à impugnação de actos administrativos. Trata-se, na lógica do professor Vasco Pereira da Silva, de uma discussão que deriva ainda da “infância traumática”do contencioso administrativo, tempos em que vigorava uma ideia de administrador – juiz.
O art. 34.º da LPTA referia expressamente que as impugnações administrativas necessárias eram pressuposto da impugnabilidade de actos administrativos. Assim sendo, antes de proceder a uma impugnação contenciosa do acto administrativo, o particular teria que esgotar necessariamente e de forma prévia todas as garantias administrativas. O actual CPTA deixou, porém, de fazer qualquer referência ao requisito da definitividade. Efectuando uma análise geral do CPTA, pode considerar-se que o mesmo não exige que os actos administrativos sejam objecto de uma prévia impugnação administrativa para que possam sofrer uma impugnação contenciosa (art. 51.º e 59.º/4 e 5 CPTA). Assim sendo, tal como refere o professor Mário Aroso de Almeida, para que haja interesse processual na impugnação perante os tribunais administrativos, não é necessário que o autor demonstre que procedeu a uma prévia tentativa de remoção extrajudicial do acto potencialmente ilegal. Refere ainda o professor que tal como acontece no processo civil, existem variadas razões que justificam um uso imediato da via judiciária.
A reforma do Contencioso Administrativo, da qual resultou o desaparecimento da regra geral de necessidade de prévia impugnação administrativa relativamente à impugnação contenciosa não apagou, porém, a existência de determinações legais pontuais que ainda hoje determinam a existência de impugnações administrativas necessárias. Não se pode considerar que o CPTA tenha o poder de revogar tais normas, pelo que, nas palavras do professor Mário Aroso de Almeida, as decisões administrativas continuam a depender de impugnação administrativa necessária nos casos em que a lei expressamente o determine, devido a uma opção “consciente e deliberada” do legislador nesse sentido. Será então necessária uma tentativa de resolução do litígio por via extrajudicial, prévia à tutela judiciária, para que a lei reconheça interesse processual ao particular que pretende impugnar contenciosamente um acto administrativo. Tais normas, segundo o professor, são especiais face ao regime geral do CPTA.
O professor Vasco Pereira da Silva toma uma posição menos tolerante em relação à possível convivência entre impugnações contenciosas e impugnações administrativas necessárias, manifestando-se pela ilegalidade e inconstitucionalidade das segundas à luz do sistema normativo actual. Refere o mesmo que, deixando o recurso hierárquico de ser pressuposto da impugnabilidade contenciosa de actos administrativos, a sua admissão não tem qualquer tipo de legitimidade, sendo uma fonte de incoerência e passando a considerar-se um recurso hierárquico “desnecessário necessário”. A incoerência provém do facto de a eliminação dos critérios de definitividade e executoriedade do art. 268.º/4 da CRP ter retirado legitimidade para que a lei ordinária mantivesse a possibilidade de recurso hierárquico necessário a determinadas situações, já que tal levaria a uma manutenção do sistema de administrador - juiz e a uma decorrente promiscuidade entre administração e justiça. O professor critica de igual modo os argumentos apresentados pelo professor Mário Aroso de Almeida, no que toca à especialidade das leis avulsas que pedem o uso de impugnação administrativa necessária face ao regime geral do CPTA. Por outro lado, considera que se o objectivo da reforma é a mudança do paradigma geral face à necessidade de recurso hierárquico necessário, as leis avulsas devem ser consideradas revogadas enquanto normas confirmativas, já que há uma revogação da regra geral de necessidade de tal recurso. Tal recurso, segundo o professor, trata-se de uma diligência inútil que dificulta o acesso dos particulares aos tribunais administrativos, sendo contrário ao espírito do art. 8.º/2 CPTA. É inconstitucional por violação do art. 268.º/4 CRP, por negação de recurso contencioso sem impugnação administrativa anterior. É igualmente inconstitucional por violação do art. 267.º/2 por via doart.142.º CPTA, bem como do art. 268.º/4 CRP.
A questão que se coloca a respeito da eventual necessidade de prévia impugnação administrativa é o problema de necessidade ou não de demonstração de interesse processual, no sentido de manifestação de interesse em aceder à justiça. A respeito desta questão, o professor Antunes Varela efectua uma comparação entre a necessidade de impugnação administrativa prévia e a exigência do requisito de interesse processual, já que considera que a legitimidade de ambos provém de necessidade de evitar que as entidades administrativas sejam bruscamente convidadas a vir a juízo, sem que a situação do impugnante o justifique. O professor refere igualmente que a existência de uma impugnação administrativa necessária ajuda a não sobrecarregar tanto a actividade judicial através da exclusão de acções desnecessárias (art. 167.º CPTA).
Parte da doutrina sustenta que a imposição de impugnações administrativas necessárias é inconstitucional, devido à eliminação, desde a revisão constitucional de 1989, da menção que constava no então art. 268.º/3 da Lei Fundamental, relacionada com a definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa. Contudo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como parte da doutrina, como é o caso do professor Mário Aroso de Almeida, rejeitam o argumento da inconstitucionalidade, sustentando que não cabe à CRP estabelecer pressupostos de impugnação de actos administrativos, sendo que não é necessária uma expressa previsão constitucional dos mesmos para que possam ser tidos como legítimos.
O professor Mário Aroso de Almeida, bem a meu ver, refere que sempre que a impugnação administrativa necessária, uma vez intentada, não produza os efeitos desejados, o caminho a seguir será sempre a impugnação contenciosa. Conclui o professor que não existe qualquer alteração em relação ao regime que vigorava anteriormente à reforma do contencioso administrativo, no que diz respeito a esta matéria, e que não se altera pelo facto de o CPTA admitir a possibilidade de condenação à prática de actos administrativos. Refere finalmente que a pretensão do interessado se dirige à remoção de um acto administrativo de conteúdo positivo que foi ilegalmente praticado, e não à prática de um acto administrativo por parte da administração pública.
Tal como refere o Acórdão STA - Proc. 1061/06, a imposição legal de recurso hierárquico necessário por lei especial não padece de inconstitucionalidade material superveniente face ao art. 268.º/4 da CRP/97. Também não é o mesmo revogado pelo CPTA ou qualquer outro diploma, considerando-se então em vigor. Para que haja um pressuposto processual necessário para a via contenciosa, deverá ter sido julgado intempestivo o recurso hierárquico interposto pelo interessado, devendo o mesmo impugnar tal decisão. Fora os casos especiais ainda hoje legalmente consagrados, deve considerar-se que as impugnações administrativas necessárias são hoje em dia um condicionamento desnecessário (art. 51.º e 59.º/4 e 5 CPTA). Tal como refere o professor Vasco Pereira da Silva, face ao CPTA, a impugnação administrativa tem sempre um carácter facultativo, suspendendo o prazo da impugnação contenciosa do acto administrativo, apesar de o particular poder impugnar contenciosamente o acto na pendência da impugnação administrativa ou decorrido o prazo estabelecido por lei para a sua decisão. Conclui-se que a impugnação necessária perdeu assim qualquer a sua utilidade, uma vez que “a sua única razão de ser era permitir o recurso contencioso”.
A reforma do contencioso administrativo veio conferir um carácter facultativo à impugnação administrativa de modo geral, sem prejuízo de disposições legais especiais que a prevêem e que se encontram em vigor (não houve qualquer tipo de revogação pelo CPTA). A interpretação correcta desta controversa discussão doutrinal originada pela decorrência de zonas de “mau contacto” entre o recente CPTA e a restante legislação existente é aquela que é feita pelo referido acórdão do STA referido e acolhida por nomes como o professor Mário Aroso de Almeida e o professor Vieira de Andrade. De facto ,a circunstância de o legislador prever expressamente, durante a vigência do LPTA, a necessidade de recurso hierárquico necessário, revelava a existência de razões, nessa altura, que justificavam tal necessidade, além da razão de ser esta a via adequada pata aceder ao recurso contencioso. Deve interpretar-se a situação de acordo com o art. 9.ºCC, que presume que o legislador consagrou as soluções mais adequadas e soube exprimir correctamente o seu pensamento.
Hoje em dia, no circunstancialismo histórico e social actuais, e sendo o actual contencioso administrativo dirigido a uma tutela efectiva dos particulares perante a administração pública, a regra consagrada pelo legislador é a impugnação contenciosa imediata de actos administrativos, podendo, contudo, existir excepções que o CPTA ou qualquer outro diploma legal não excluem e a CRP não proíbe. Há que fazer uma análise casuística, pois através da sensibilidade jurídica que deve assistir o intérprete, analisando os critérios de razoabilidade, adequação e necessidade guias da actividade administrativa, é possível distinguir o regime geral pretendido pelo CPTA das situações especiais consagradas em normas pontuais, e que requerem especial procedimento.

Bibliografia:
- Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, 2005;
- Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 4ª ed., 2005;
- Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (lições), 10ª ed., Coimbra, 2009

Pedro Catarino A/4 nº17499

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