domingo, 8 de maio de 2011

Processos Cautelares – A Reforma (algumas considerações)


O art.20.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) sempre assegurou a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, por conseguinte, daí já se podia retirar o direito à tutela cautelar. Com a revisão da CRP em 1997, o seu art. 268.º n.º 4, passou a referir de forma expressa, a garantia aos administrados de uma tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, através da possibilidade de adopção, por parte do juiz, de medidas cautelares adequadas a assegurá-los.

A Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA) de 1985 no seu art. 1.º estabelecia que o processo nos tribunais administrativos se regia pela mesma e, supletivamente, pelo disposto na lei de processo civil. Assim a LPTA no, Capítulo VII, Secção I, previa a possibilidade de suspensão da eficácia dos actos, bem como outras figuras que não são meios processuais acessórios, como a execução de julgados. O mecanismo previsto no art. 76.º LPTA só era aplicável a actos administrativos positivos. Assim, nenhuma tutela cautelar havia relativamente a regulamentos e contratos administrativos, bem como a actos administrativos negativos. Só se previam providências de efeitos conservatórios, ou seja, “que se destinam a reter, na posse ou na titularidade do particular, um direito a um bem de que ele já disponha, mas que está ameaçado de perder”. A suspensão só seria concedida se a execução do acto fosse causar provavelmente um prejuízo de difícil reparação para o requerente e não determinasse grave lesão do interesse público. Este meio era assim, aplicado de forma muito restrita, sendo por vezes aplicadas as disposições do Código de Processo Civil (CPC).

O texto constitucional de 1997 passou a reclamar uma alteração legislativa que concretizasse a protecção cautelar adequada, agora expressamente estabelecida. A Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro veio aprovar o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) que consagra, nos arts. 112.º e seguintes, o princípio da não taxatividade das providências cautelares, bem como regras flexíveis de ponderação quanto à sua adopção.

Os processos cautelares destinam-se a acautelar o efeito útil da decisão judicial principal. Visam garantir o tempo necessário para que seja feita justiça, para que se assegure a utilidade da sentença final, em caso de haver atrasos na tomada de decisão, ou mesmo que a eles não haja lugar, há sempre um tempo necessário para julgar bem. A sentença torna-se inútil se no momento em que é proferida, por não se terem concedido as providências cautelares necessárias, da decisão já não se poderem retirar quaisquer efeitos.

As providências cautelares são caracterizadas pela:
- Instrumentalidade, que se traduz na dependência necessária de uma acção principal, onde é decidido o mérito da causa, cujo efeito útil se visa assegurar. Esta característica está presente nos arts. 112.º, 113.º e 114.º CPTA. Segundo o n.º1 deste último, as providências cautelares, podem ser adoptadas:
a) Previamente à instauração do processo principal;
b) Juntamente com a petição inicial do processo principal;
c) Na pendência do processo principal.
- Provisoriedade, pois é uma composição provisória do litígio, não existindo a sua resolução definitiva. A decisão de tutela cautelar e o seu conteúdo podem ser alterados. Segundo o art. 124.º nº1 do CPTA, a decisão tomada no sentido de adoptar ou recusar a adopção de providências cautelares pode ser revogada, alterada ou substituída na pendência da causa principal, com fundamento na alteração das circunstâncias inicialmente existentes. Torna-se relevante para estes efeitos, não só a eventual improcedência da causa principal, decidida por sentença de que tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo, como também sentença que julgue procedente a causa principal e que nessa medida reveja a eventual rejeição de adopção de uma providência cautelar. O preceituado no artigo supra indicado pode ser da iniciativa do próprio tribunal ou a requerimento de qualquer dos interessados ou do Ministério Público, quando tenha sido este o requerente.
- Sumariedade ou summaria cognitio, significa que o juiz conhece de forma sumaria a pretensão do autor. A decisão de adopção de uma providência implica assim um conhecimento introdutório. Daí que haja necessidade do requerente da mesma, demonstrar ao juiz que há perigo na demora do processo principal (periculum in mora) e não sendo adoptadas medidas a pretensão sua pode ser prejudicada (art. 114.º n.º3 al. g) do CPTA).

A jurisdição administrativa deixa de estar condicionada a um rol restrito de providências cautelares, estabelecendo o art. 112.º n.º1, que quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo. As providências a tomar podem agora também ser do tipo antecipatórias, de modo a “obter, antes que o dano aconteça, um bem a que o particular tenha direito”. Acrescentando o nº2 do mesmo artigo, que podem ser também adoptadas as providências especificadas do CPC. Necessário é que as mesmas a serem concedidas no âmbito administrativo, sejam conformadas e adequadas ao caso concreto. O juiz decide assim, sobre qual a providência adoptar, civil ou administrativa, mediante um juízo de proporcionalidade, qual a que em concreto se afigura mais adequada. Segue no art. 112.º n.º 2 CPTA um elenco exemplificativo das providências administrativas que podem ser adoptadas: a) suspensão da eficácia de um acto administrativo ou de uma norma; b) admissão provisória em concursos e exames; c) atribuição provisória da disponibilidade de um bem; d) autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta; e) regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição à Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas ou a título de reparação provisória; f) intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular, designadamente um concessionário, por alegada violação ou fundado receio de violação de normas de direito administrativo.

No que respeita aos critérios de decisão das providências cautelares a adoptar, há que considerar o disposto no art. 120.º do CPTA. O art. 120.º nº1 al. a) do CPTA, determina que quando estejam em causa actos manifestamente ilegais e seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal, devem ser adoptadas medidas cautelares. CARLA AMADO GOMES defende que os “actos manifestamente ilegais” demonstrados de forma sumária servem como critério orientador do juiz na adopção automática da medida cautelar requerida, ainda que por exemplo, quando o pedido de providência seja tardio, o juiz deve proceder ainda assim a uma ponderação. A evidência da procedência da pretensão formulada, por sua vez, visa salvaguardar interesses públicos e privados e de acordo com VIEIRA DE ANDRADE dispensa a verificação do periculum in mora no caso específico, dado que ele releva sempre na medida em que o requerente deve-o fazer constar do requerimento, neste caso, a al. g) do n.º3 do art. 114.º do CPTA. Por sua vez, TIAGO AMORIM entende que o periculum in mora deve sempre verificar-se ainda que o art. 120.º nº1 al. a) do CPTA não exija “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses”, como consta das als. b) e c). Acrescentando o autor, que se se concluir “que a utilidade da sentença não corre perigo, nada perdendo o requerente em aguardar, então a providência não deve ser decretada”. CARLA AMADO GOMES entende que o regime do art. 120.º nº1 al. a) do CPTA é também aplicável, quando estejam em causa regulamentos, por força do art. 130.º n.º4 do CPTA que faz uma remissão para o disposto no capítulo I do CPTA, e quando estejam em causa operações materiais e actuações informais da administração.
O art.120.º nº1 als. b) e c) do CPTA refere-se à concessão de providências conservatórias e antecipatórias, respectivamente, quando não está em causa uma situação da al. a) do nº1 deste mesmo artigo, para além da verificação do periculum in mora, em caso de providências conservatórias há que atender à existência de fumus non malus, isto é, que a pretensão formulada ou a formular nesse processo não seja manifesta a sua falta de fundamentação, em caso de providências antecipatórias a lei exige a probabilidade positiva da pretensão formulada ou a formular, venha a ser julgada procedente.
O n.º2 do art. 120.º do CPTA introduz o princípio da proporcionalidade, na sua vertente do equilíbrio, no que respeita à adopção de providências cautelares. Caso os prejuízos que resultem da concessão da providência se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, ela não deve ser adoptada. O legislador estabeleceu também a possibilidade de estarem ou não em causa, simultaneamente, a ponderação de dois interesses privados ou públicos. Este princípio está presente também no art. 120.º n.º 3 do CPTA quanto ao tipo e conteúdo da providência a adoptar. Ela tem de se limitar ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente. Ouvidas as partes, tem o juiz uma margem de discrionariedade para adoptar em cumulação ou em substituição da providência requerida quando tal se revele adequado a evitar ou a atenuar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente e seja menos gravoso para os demais interesses, públicos ou privados. Pode assim o juiz adoptar a providência, que no caso concreto se mostre mais adequada.

No que concerne à possibilidade de convolação do processo cautelar em principal rege o art. 121.º do CPTA, chamando CARLA AMADO GOMES a atenção para a “interpenetrabilidade entre processos cautelares e processos sumários”. Segundo o n.º1 do art. 121.º do CPTA quando a manifesta urgência na resolução definitiva do caso, atendendo à natureza das questões e à gravidade dos interesses envolvidos, permita concluir que a situação não se compadece com a adopção de uma simples providência cautelar e tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito, o tribunal pode, ouvidas as partes pelo prazo de 10 dias, antecipar o juízo sobre a causa principal. Ainda que os requisitos para a sua aplicação sejam exigentes, deve ser feita uma ponderação ampla dos interesses em causa.

Para que se assegure a efectividade da acção principal bem como da providência cautelar, afigura-se importante a garantia, estabelecida no art. 127.º do CPTA, de execução forçada das decisões do juiz que adoptem providências cautelares, para que a administração efectivamente as cumpra. As consequências estão previstas no nº2 do art. 127.º do CPTA, podendo os interessados requerer ao tribunal, onde penda o processo de suspensão da eficácia, até ao trânsito em julgado da sua decisão, a declaração de ineficácia dos actos de execução indevida (art. 128.º n.º4 do CPTA).

Os arts. 128.º e seguintes do CPTA estabelecem providências cautelares com especialidade de regimes, como sendo:
- as dos arts. 128.º e 129.º do CPTA - a proibição de executar o acto administrativo e a suspensão da eficácia do acto já executado, que correspondem ao instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos, regulado pela LPTA, ainda que alguns autores, como MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, considerem que aqui há apenas uma complementação do regime geral para estas providências.
- do art. 130.º do CPTA – pois , ao contrário do estabelecido na LPTA, veio admitir a suspensão da eficácia de regulamentos, considerados em sentido amplo. Pode ser feito um pedido de suspensão de norma circunscrito ao caso concreto ou com alcance geral.
- do art. 132.º do CPTA – que permite agora a adopção de providências cautelares quando estejam em causa contratos ou os procedimentos que os antecedem.
- art. 133.º do CPTA – respeita à entrega provisória de quantias pecuniárias, por forma a evitar situações de carência que resultariam da falta de pagamento das mesmas. É aqui utilizado o critério da necessidade, quando o legislador faz referência a “indispensáveis”.
- art. 134.º do CPTA – visa a produção antecipada de prova, que segundo VIEIRA DE ANDRADE, é assumida pelo legislador como providência, mas não cautelar.

O art. 131.º do CPTA, presente no Capítulo II, do qual fazem também parte os artigos imediatamente acima referidos, aplica-se a qualquer providência que tutele direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam ser exercidos em tempo útil ou quando o interessado entenda haver especial urgência, pode pedir o decretamento provisório da providência. VEIRA DE ANDRADE defende, que apesar do nº3 do art. 131.º CPTA não ser claro, deve entender-se que se está em causa a lesão iminente e irreversível de direitos, liberdades e garantias, deve o juiz, oficiosamente decretar a providência, em cumprimento do princípio da tutela judicial efectiva, ainda que não tenha havido requerimento do interessado para tal.



Bibliografia:
Amaral, Diogo Freitas de/ Almeida, Mário Aroso de, “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, 2004
Amaral, Diogo Freitas do, “As providências cautelares no novo contencioso administrativo”, in CJA, n.º43, Janeiro/Fevereiro. 2004
Andrade, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa, lições”, Almedina, 2011
Andrade, José Carlos Vieira de, “Tutela Cautelar”, in CJA, nº 34, Julho/Agosto 2002
Gomes, Carla Amado, “O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa”, in CJA, nº39, Maio/Junho 2003
Roque, Miguel Prata, “Reflexões sobre a Reforma da Tutela Cautelar Administrativa”, Almedina, 2005

Sem comentários:

Enviar um comentário