domingo, 1 de maio de 2011

Questão: Acto administrativo sob forma de lei vs lei-medida. Uma questão de impugnação.



Antes de entrar na principal discussão que esta questão coloca, há que atender às três principais normas que vão ser aqui confrontadas, isto, é há que atender ao disposto no art. 120,º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), que dispõe a noção de acto administrativo como sendo “as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”; e ao art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), nomeadamente às alíneas a), b), c) e nº 2, al. a), sendo de relembrar que este número 2 já traduz um critério excludente da jurisdição administrativa, ao dispor que fica “excluída do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa”. Acresce, finalmente, o disposto no art. 268, nº 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo que respectivamente se estabelece que “é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, (…) a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma (…)”; os cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
E lei, em si mesmo considerada, tem sido tradicionalmente apontada como tendo duas principais características: a generalidade e a abstracção, sendo que a generalidade se caracteriza pela indeterminabilidade dos destinatários e a abstracção pela variadas situações às quais se pode subsumir. No entanto, o nosso Código Civil, no seu art. 1.º, nº 2 só atende à característica da generalidade, focando também o princípio da separação de poderes.
Não sendo este o local para explanações acerca da evolução da noção de lei desde, pelo menos, o liberalismo até à época moderna., não nos podemos escusar de atender ao sentido de lei em sentido material e lei em sentido formal, sendo que a este propósito o Prof. Jorge Miranda escreve: “e lei em sentido material corresponde a lei como acto da função legislativa e é sempre, necessariamente, também lei em sentido formal”, concluindo que “Lei em sentido material não é apenas lei enquanto dotada de generalidade. É a lei como acto da função política e sujeita imediatamente à Constituição”.
É, pois, através destas noções generalizadas que surgem de lei que se coloca a questão de lei-medida.
Depois de já termos exposto a parte da lei, será necessário responder à questão: o que é a medida?
Esta tem sido uma ideia muito debatida na doutrina portuguesa e estrangeira, sendo que a noção surge, principalmente, após a Constituição de Weimar e, tradicionalmente, a ideia que lhe subjaz, numa primeira leitura, é a de excepcionalidade.
Porém, como escreve o Professor David Duarte: “A partir de 1933 a excepção torna-se quase continuamente a regra…”, sendo que é a partir dessa altura que a discussão (e a utilização) acerca deste meio justifica discussões.
Focando alguma opinião estrangeira e muito aglutinadora do pensamento nacional, Carl Schmitt vê a medida como acção individualizada ou disposições gerais, adoptadas com vista a uma situação concreta que se considera anormal e, portanto, superável, e que não pretende vigência por tempo indefinido. Este autor não admite, porém, leis individuais no conceito de lei-medida.
Por outro lado, Constantino Mortati e Alberto Predieri apresentam uma noção semelhante e mais desligada da ideia de generalidade, pois definem a medida como sendo caracterizada pela determinabilidade dos destinatários, pela produção de efeitos remetidos a uma situação específica e, aquele, ainda admite como lei-medida tanto o acto geral e concreto como o individual e abstracto. Como se pode aqui notar, há um claro afastamento da correlação entre lei-medida e excepcionalidade, onde a cerne acabam por ser, cada vez mais, os destinatários da mesma.
Voltando a Portugal, a doutrina também tem debatido este assunto, nomeadamente nas matérias relacionadas com as tradicionais noções de lei, acima expostas, tal como no âmbito dos direitos fundamentais e respectiva segurança jurídica que uma lei-medida pode conferir em contraposição com uma dita lei geral e abstracta.
Neste sentido, primeiramente, cite-se o Professor Jorge Miranda, que escreve que “leis-medida são leis concretas e gerais, são leis de intervenção em situações concretas, para precisos efeitos e que se traduzem, pois, em medidas ou providências dirigidas à resolução destes ou daqueles problemas em tempo útill”. Acrescenta um ponto, diríamos, curioso, ao acentuar que o legislador “ prescinde dos actos administrativos de execução e realiza ele mesmo o efeito ou resultado desejado”.
Por esta breve explicação, não é difícil ver que o Professor continua a acentuar a característica da excepcionalidade e é por esse particular motivo que não o afasta, em nada, da função legislativa, reiterando o alheamento face à Administração. Além disso, é da opinião que o elemento essencial da lei acaba por ser a generalidade e não a abstracção.
Retomando a opinião do Professor David Duarte, que se mostrará mais consentânea com a questão principal, este foca o seguinte aspecto: a medida não é duradoura como resultado da sua concreteza, sendo que a satisfação dos seus fins incidirá sobre uma situação concreta e definida que poderá ser tão duradoura quanto essa situação se prolongar. Acaba, conclui, por ser a lei individual e concreta o exemplo paradigmático de lei-medida.
Baseando, pois, na definição que este autor acaba por dar de medida, surge a questão principal deste “post”.
O autor define a medida como sendo “o acto da função legislativa caracterizado pelo conteúdo individual ou concreto, a qual tem por base a inexistência de uma hipotecidade de situações ou uma definição não categorial dos sujeitos, ou ainda, nos casos de baixíssimo grau de generalidade em que seja manifesta a determinabilidade dos destinatários. Como consequência, a lei-medida é obrigatoriamente uam decisão, enquanto acto político-legislativo individual ou concreto”.
Ora, começa aqui o ponto de partida para o tema principal porque, tendo já uma noção de medida, convém agora retomar as disposições a que aludimos no início, pois vejamos:
Confrontando com a noção apresentada pelo art. 120.º do CPA com a ideia de medida aqui exposta, e sobre a qual nos vamos debruçar, conflui a ideia de situação  individual e concreta. Porém, sendo um acto administrativo não tem qualquer problema em caber no art. 4.º, nº 1 do ETAF, desde que emitido por uma entidade que actue ao abrigo de normas de direito público. Por outro lado, o art. 4.º, nº2, al. a) é contundente ao excluir deste âmbito administrativo os actos praticados no exercício da função política e legislativa. Aparentemente, pode não surgir aqui uma violação do princípio da separação de poderes, apesar de haver quem veja uma possibilidade de essa realidade acontecer no que diz respeito a este assunto, mas adiante.
Em que medida não poderia, pois, uma lei-medida caber, por exemplo, na alínea c) do art. 4.º, nº1 do ETAF? Por que razão é que por um acto vir do Governo, em forma de lei, terá que caber, incontornavelmente, no nº 2 do art. 4.º do ETAF?
É, pois, aqui que se coloca a questão da existência de haver um acto administrativo sob a forma de lei que parece que poderá ficar subtraído ao controlo administrativo devido ao facto de emanar do Governo ou da Assembleia da República.
A partir de que momento é que se atenta ao conteúdo e não á forma? Parece que a resposta a esta questão surge clara no art.268.º, nº 4 da CRP, o qual especifica a independência da forma dos actos administrativos que lesem os particulares. Não obstante, parece que o ETAF atende à forma, pois apesar de utilizar o vocábulo “actos”, coloca o ênfase no exercício da função.
Não tratamos aqui do papel que o Ministério Público poderia ter nesta questão, mas atendendo ao papel de defesa da legalidade que lhe cabe, o caminho poderia ser mais fácil.
O cerne está, assim, na posição do particular que pode, através de uma lei-medida, ser abrangido especificamente, tão especificamente como se de um acto administrativo se tratasse, e ser lesado pela mesma. Que meio tem à sua disposição se interpretarmos literalmente o art. 4.º, nº 2, al. a) do ETAF? Caso fosse esta a interpretação, não poderia impugnar directamente perante um tribunal administrativo ou, pior, poderia correr o risco de o tentar fazer e esbarrar com inimpugnabilidade do acto impugnado ou ilegitimidade do autor (e) ou do demandado, pelo art. 89.º, nº1, al.c) e d) do CPTA. É que esta questão pode conduzir a um manancial de hipóteses que não apresentam, no imediato, uma resposta à lesão que o particular pode ter sofrido em virtude da lei-medida, pois veja-se: pode o particular fazer uma queixa por acção perante o Provedor de Justiça, que a apreciará sem poder decisório, dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças (art. 23.º, nº 1 da CRP), não poderá recorrer a um género de recurso de amparo, visto que o mesmo não vigora em Portugal, pelo que uma possível violação do princípio da igualdade não poderia ser directamente arguida pelo particular e, finalmente, como última ratio, haveria a responsabilidade civil do Estado, o que parece que desde que surgiu pode ser a última ratio de tudo o que, em boa verdade, para o particular, não é nem a primeira nem última…
Por isso, atentando nas opiniões acima expostas e á tutela que a CRP efectivamente pretende fazer às pretensões do particular, haverá casos em que penso que a dita lei-medida poderá concretizar-se num acto administrativo sob forma de lei, pelo que a interpretação a fazer do art. 4.º, nº 2, al. c) do ETAF não deverá ser literal e, em caso de lesão do particular atingido pela mesma, deverá a impugnação caber no disposto no art. 51.º, nº1 ou nº 2 do CPTA, sem do que no ETAF a fiscalização seria ao abrigo do art. 4.º, nº1, al.c).
Considero, pois, que assim fica totalmente assegurada a tutela efectiva das pretensões do particular quando um acto é lesivo dos seus direitos individualmente considerados.

Catarina Venceslau de Oliveira, Subturma 4, Aluna nº 17220


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