segunda-feira, 25 de abril de 2011

A condenação à prática do acto legalmente devido: a questão dos actos tácitos.

1.      Naissance

Sob pena de cair em exaustividade, e em consequente aborrecimento, aludiremos da forma mais breve e sucinta possível ao histórico nascimento da figura entre nós.

Durante largos anos vivemos ao lado de um contencioso débil e altamente limitado pelo seu casamento infeliz com a concepção francesa de uma Administração “toda-poderosa”. A primeira regra de boa convivência neste casamento era o respeito pela rígida interpretação francesa do princípio da separação de poderes, que originava, como produto final, um contencioso subserviente, de mera anulação.

Por arrasto ao aparecimento do Estado social e pós-social, surgem direitos subjectivos dos particulares a prestações por parte das autoridades públicas, originando posições jurídicas de conteúdo pretensivo que não poderiam ser tuteladas por recurso a um mero contencioso de revisão.

Veja-se que à luz do coxo contencioso de tipo francês, tendo um particular direito a uma qualquer prestação do Estado, e não tendo este prestado, não tendo este praticado qualquer tipo de acto nesse sentido (ou no sentido inverso, que seja), como poderia o particular reclamá-lo se o recurso de anulação pressupunha a existência de um acto a anular, que como vimos não existiu?

Tinhamos um problema.

Como em todos os casamentos, para que se ultrapassem problemas, é sempre necessário, mais do que cedências, um bocadinho de imaginação. E é então que surge uma das maiores invenções da história do Direito, o acto tácito de indeferimento.

O acto tácito de indeferimento tratava-se no fundo de uma ficção de um acto que, a existir, legitimaria o particular ao recurso ao contencioso de anulação, e que portanto se finge que existe para que o particular assim possa ver a sua posição pretensiva, de alguma forma, tutelada.

O que se fazia, no fundo, era ficcionar que o silêncio da Administração tinha o significado de negação, e portanto que dele resultava um acto de indeferimento impugnável (que não existia no mundo das pessoas e dos actos, mas que existia numa qualquer realidade paralela e que descia a este mundo real, leia-se das pessoas e dos actos, em espírito) e que portanto, já poderia ser impugnado e, consequentemente, anulado, ou não. Mas de forma algo torpe, conseguia-se no resultado, condenar a administração na prática de actos devidos.

Esta situação deixou ainda mais a nú as limitações de um contencioso administrativo de matriz essencialmente objectivista, que para corrigir uma omissão das autoridades públicas tinha de dar asas à imaginação e cerrar bem os olhos de forma a conseguir ver um contorno de um acto lesivo. O surrealismo devia ter-se mantido à distância do Direito, pensamos.

Surge então, no ano de 1985, a LEPTA, e consigo, a jeito de salvação, um novo meio processual: a acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos (artg. 69º).
Agora, um particular que se visse na encruzilhada de uma omissão ilegal por parte da Administração, dispunha  de dois meios processuais: a via tradicional do recurso de anulação do indeferimento tácito, e o recurso à jovial acção para o reconhecimneto de direitos e interesses legalmente protegidos.

Fora as boas intenções de uma evolução no sentido de uma maior subjectivação, mesmo depois da LEPTA, os vícios mantinham-se, continuava a haver uma predominância do recurso contencioso de anulação, o juíz continuava a deter poderes meramente cassatórios, e o Contencioso continuava  a cultivar a sua forte matriz francesa.

A revisão constitucional de 1997 vem tornar o panorama ainda mais contraditório, ao introduzir o artigo 268º/4 da CRP que expressamente prevê na tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares a possibilidade de “determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”, sob os contornos de um direito fundamental de natureza análoga e, por conseguinte, directamente aplicável, 18º/1 CRP.
Duas correntes de pensamento se erguem, de um lado estão aqueles que encaram o preceito constitucional como a consagração de um novo meio processual, de outro aqueles que vêem nele apenas a  garantia protecção constitucional acrescida de um direito a ser conseguido pelos meios processuais já existentes.
No entanto este debate entusiático não foi nem um pouco acolhido pelo tribunais que continuariam a mover-se no cheiro a mofo do antigo contencioso, por conservadorismo ou mero comodismo, quiçá.
Tudo se esbate com a entrada em vigor do CPTA, e com a consagração, no seu artigo 66º, da acção de condenação à prática de acto devido, como verdadeira modalidade acção administrativa especial.



2.      Âmbito do trabalho


Em termos breves, o CPTA regula a acção de condenação à prática de acto devido nos seus artigos 66º a 71º CPTA.
Através do recurso à mesma, o particular consegue um de dois efeitos úteis,  a condenação da administração na prática de um acto ilegalmente omitido, ou a condenação da mesma na prática de um acto ilegalmente recusado.
Como pressupostos, o artigo 67º apresenta-nos essencialmente  três:
- existência de um dever de agir que recaia sobre a administração decorrente da existência concreta de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão de um acto administrativo;
- que tenha passado o prazo legal instituído para a pronúncia da Administração;
- verificação de uma atitude ilegal da Administração Pública, que se pode concretizar numa omissão pura, na recusa expressa da prática do acto que se apresenta como legalmente devido, recusa de apreciação do requerimento.

No âmbito do presente estudo, pretendemos desbravar caminho para a definição do conceito de omissão administrativa, procurando aferir se dentro dela podemos incluir os actos administrativos tácitos, quer negativos quer positivos, já que esta se apresenta como pressuposto essencial para o recurso à acção para a prática de acto devido.



3.      Caracterização da omissão administrativa: a questão dos actos tácitos


A lei apenas aponta como omissão administrativa os casos em que “não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido”, artigo 67º/1  al. a) CPTA,  e em casos de inércia, artigo 69º/1 CPTA.
Caberão nestas duas expressões as figuras do indeferimento tácito e do deferimento tácito?



3.1.  O indeferimento tácito


Como já referimos supra, o indeferimento tácito não passou de um bem engendrado esquema para poder tutelar a posição dos particulares frente a um contencioso de mera anulação.
 Com a mudança de paradigma no actual ordenamento, a construção legal cai na inutilidade, passando o “incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir por parte da administração a ser tratado como uma omissão pura e simples que efectivamente é, ou seja, como mero facto constitutivo do interesse em agir em juízo para obter uma decisao judicial de condenação á prática do acto ilegalmente omitido” (in Mário Aroso de Almeida, o novo regime… página 167).

Tudo parece pacífico, estranhamente pacífico. E tudo seria pacífico, um vez que a doutrina é unânime quanto à revogação do regime do indeferimento tácito,  não fosse o surgimento de um recente e controverso acórdão que nos lança de novo para um terreno largo de contradições.

Deixamos aqui o link:

Recentemente este Acórdão, em conferência na Secção de Contencioso Administrativo, datado de 24 de Novembro do ano da graça de 2004, veio ressuscitar o acto de indeferimento tácito nos seguintes termos:
“nada impede que, ao lado do regime geral, a lei consagre, para casos pontuais, regimes especiais (…) de formação de indeferimento no procedimento gracioso (maxime em recurso administrativo de decisão de primeiro grau), desde que semelhante desvio das regras comuns se mostre necessário à eficácia e prontidão das decisões a proferir na matéria, fique garantida a segurança jurídica, a efectividade da tutela e sejam dirigidos à obtenção de valores superiores aos sacrificados”.

Como bem refere André Rosa Lã Pais Proença, na sua tese “ As duas faces da condenação á prática de acto devido”, abrir as portas a regimes especiais de indeferimento tácito é trazer mais uma fonte de incerteza para o particular, já que se o direito de acção previsto no artigo 69º CPTA caduca no prazo de um ano, já quando tenha existido indeferimento, o prazo comprime-se para apenas três meses.
Remata-se o exposto com uma citação do autor que nos parece assentar aqui “que nem uma luva”, o referido acaba por conduzir à invevitável conclusão de que “ no contencioso  administrativo português, nem tudo o que parece , é, e que nada pode ser dado por adquirido…”.



3.2.  O deferimento tácito


Se a doutrina é consoladoramente unanime no que toca à revogação do regime dos actos tácitos pela entrada em vigôr do CPTA, coisa diferente se passa no tocante aos actos tácitos positivos, previstos genéricamente no artigo 108º CPTA e especialmente em vários diplomas avulsos, como o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

De Acordo com uma interpretração literal do artigo 67º/1 al. a) parte final, parece que aqui se abraçam todos os tipos de actos tácitos, sem qualquer tipo de distinção entre actos positivos ou negativos, ou seja, parece que “o silêncio administrativo teria deixado de ser valorado negativa ou positivamente, para passar, de forma uniforme, a ser tratado como uma pura e simples omissão do dever legal de decididir” (André Rosa Lã Pais Proença, in “As duas faces (…)).

Larga doutria se formou no sentido oposto do explicitado, defendedo a operatividade da figura e portanto a não revogação do seu regime pelo CPTA.

Como exemplo temos a posição do Prof. Mário Aroso de Almeida, que ao qualificar  o deferimento tácito como presunção legal de prenúncia da administração num sentido favorável acaba por neutralizar a necessidade de recurso a uma ação judicial, já que o acto passa a produzir os seus efeitos por força legal, e consequentemente passa a ter existência jurídica.

A posição do professor, que perfilha a posição de revogação do acto tácito negativo mas defende a plena funcionalidade da figura do acto tácito positivo no contencioso actual, parte da diferente natureza atribuída ás duas figuras. Enquanto a primeira assume uma natureza e mero alcance processual, nas linhas que definimos supra, a segunda assume efeitos substantivos, os de considerar diferida a pretensão de um particular, obtendo o efeito útil da acção de condenação, sem necessidade de recurso judicial para tanto.

Será no entanto de ponderar a evolução do conceito de relação jurídica administrativa no sentido da multilateralização da mesma. Queremos com isto dizer, que hoje em dia não podemos encará-la como meramente bilateral, já que por um dado acto administrativo serão afectados uma pluralidade de indivíduos, daí a importância fulcral que hoje em dia, mais que em todos os tempos, assume o procedimento administrativo, salvaguardando a possibilidade de tutela dos interesses de todos aqueles que possam vir a ser afectados pela decisão administrativa. Daí que se tenha de encarar a operatividade do deferimento tácito com cautela. Como muito bem evidencia Carlos Cadilha, o acto tácito positivo, mais que uma presunção de conformidade legal da pretenção do particular, representa uma forma de colmatar a demora da pronúncia da Administração, atribuindo efeitos substantivos a favor de uma das partes sem consideração pelas restantes.
Assim, ao lado de Carlos Cadilha,outras vozes se erguem no sentido de fazer alinhar o acto tácito positivo no conceito de omissão administrativa, é o caso de Rita Calçada Pires e Colaço Antunes.

Para Rita Calçada Pires admitir que a Administração continue a “agir” por via do acto tácito de deferimento consubstancia uma petição de princípio, no sentido em que se estaria a negar a força pedagógica que à condenação à prática de acto devido se quer atribuir, que se trata no fundo de “domesticar” a Administração, fazendo-a mudar de atitude, e isto porque intrinsecamente considerado o silêncio administrativo é sinónimo de mau funcionamento da mesma.

Assim, a autora na esteira de Carlos Cadilha, pronuncia-se pela revogação dos artigos 108º e 109º do CPA e em recta final, leva a acção para a determinação para a prática de acto devido ao pódio, como “único e eficaz meio processual de tutela jurisdicional das omissões administrativas”.



4.      A título de conclusão


Em termos conclusivos, parece-nos que, como vem sendo hábito, a questão permanece em aberto. Pois se por um lado o regime do indeferimento tácito, dada a sua natureza meramente processual, parece totalmente eclipsado pela entrada em vigôr do CPTA, são abertas não portas, mas talvez janelas, para o deixar de novo entrar no regime do contencioso administrativo alegando a celeridade processual que proporciona em detrimento da segurança juridíca que inevitavelmente gera.

Se por um lado vozes se erguem , com argumentos coerentes, num e noutro sentido quanto à manutenção da figura do acto tácito positivo, o elemento literal do artg. 67º/1 al. a) não parece ser de ignorar, e ou muito nos falha o português ou nele se inclui todo o tipo de actos tácitos, já que ambos perconizam um não proferimento de uma decisão dentro de um prazo legalmente estabelecido, e portanto, quanto a nós, consubstanciam omissões administrativas a ser contestadas através do recurso à acção de condenação à prática de acto devido.


Rita Lima de Sousa
Nº 17787

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