sexta-feira, 22 de abril de 2011

Do recurso hierárquico necessário – Parte I: Contextualização e questões prévias


1. Introdução

Escolhemos o tema do recurso hierárquico necessário fundamentalmente por duas razões: dada a controvérsia da questão, especialmente na susceptibilidade de qualificar a figura do recurso hierárquico necessário enquanto pressuposto processual de acesso aos tribunais administrativos, atendendo ao disposto no art. 167º/1 CPA e através da sua escolha de critério distintivo entre as duas espécies de recursos hierárquicos; fundar uma posição acerca da dúvida sobre a (in)constitucionalidade do recurso hierárquico necessário.


2. Contexto histórico e evolução legislativa

A exigência feita pelo art. 25º/1 LPTA aos requisitos de definitividade e executoriedade [1] visava delimitar o universo dos actos administrativos recorríveis contenciosamente. Esta regra tinha apoio constitucional no art. 269º/2 CRP na sua versão originária. [2]

Não cabe apreciar o conceito de acto executório para efeitos da presente exposição, concentrando-nos na ideia de definitividade, com particular relevância para a definitividade vertical. [3]

Seriam verticalmente definitivos os actos praticados por órgãos sem superiores hierárquicos ou praticados por subalterno ao abrigo de delegação de poderes ou no exercício de uma competência exclusiva; relativamente aos actos definitivos dos subalternos, estes poderiam ser imediatamente impugnados contenciosamente, sendo igualmente admissível a impugnação graciosa por via do recurso hierárquico que, nestes moldes, tinha-se como facultativa.

Já quanto aos actos não definitivos dos subalternos, estes eram insusceptíveis de impugnação pela via contenciosa (exactamente por não serem dotados de definitividade) restando a reacção sob a forma de recurso hierárquico para o superior do autor do acto e, face ao insucesso na satisfação da pretensão verificado na instância administrativa, abria-se a possibilidade de impugnação jurisdicional da decisão definitiva do superior, o que, na prática, consubstanciava um recurso hierárquico necessário na medida em que, na falta de definitividade do acto do subalterno, a única forma de aceder à tutela jurisdicional passaria pela prévia utilização dos meios de impugnação graciosa sob as vestes de um recurso hierárquico (já que também será impugnação administrativa a impugnação por via da reclamação – arts.161º e ss CPA).

Na prática, o âmbito limitado dos actos definitivos dos subalternos, nas formas acima enunciadas, tornava como regra geral o recurso hierárquico necessário dos actos dos subalternos.
Com a revisão constitucional de 1989 surge a regra do art. 268º/4 CRP na qual “ é garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e adopção de medidas cautelares adequadas.”, desaparecendo do quadro constitucional a menção ao carácter definitivo e executório do acto, passando a centrar-se na susceptibilidade de lesão dos direitos ou interesses do recorrente, o que parece traduzir uma evolução no sentido do alargamento da garantia de recurso contencioso originariamente consagrada pelo legislador constituinte.
Com a alteração constitucional suscitou-se a inconstitucionalidade superveniente do art. 25º LPTA na medida da sua imposição de definitividade dos actos dos subalternos, por se opor ao conceito de acto lesivo com consagração constitucional expressa enquanto manifestação do sentido evolutivo acima descrito, ignorando a susceptibilidade de lesão de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares por actos de subalternos, e consequentemente pondo-se em causa a regra do recurso hierárquico necessário, posição sufragada então por nomes como MARCELO REBELO DE SOUSA, GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, PAULO OTERO e VASCO PEREIRA DA SILVA.

Na outra ponta da discussão, defendendo a não inconstitucionalidade do art. 25º LPTA com o argumento principal de que não teria sido a intenção do legislador constituinte tratar acerca dos pressupostos processuais da impugnação de actos administrativos tínhamos R. EHRHARDT SOARES, DIOGO FREITAS DO AMARAL, SÉRVULO CORREIA e VIEIRA DE ANDRADE.

Sector minoritário na doutrina admitia a inconstitucionalidade do art. 25º LPTA com fundamento na violação do principio da reserva de lei, a par duma defesa da conformidade constitucional do recurso hierárquico necessário em situações especificas desde que respeitados os requisitos constitucionais de restrição do direito fundamental de impugnação de actos administrativos lesivos (respeitando assim o art. 268º/4 e 18º/2 da CRP). [4]


3. Breve nota acerca do acto administrativo e do acto administrativo impugnável nos dias de hoje

Conhecida é a não coincidência entre o conceito de acto administrativo e o conceito de acto administrativo impugnável: acto administrativo será sempre um acto decisório (expressão de vontade da Administração em determinar o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar), tal retirando-se do art. 120º CPA, mas tanto poderá ter eficácia externa como funcionar no seio de relações intra-administrativas e inter-orgânicas, entendimento que parece ser o mais coerente atendendo à letra da lei do art. 120º CPA, que não alude à necessidade de eficácia externa ao contrário do que sucede com o art. 51º/1 CPTA, e com o espírito do sistema do CPA [5]

Assim, actos administrativos com eficácia interna são actos administrativos para efeitos do art. 120º CPA mas não para efeitos de acto administrativo impugnável do art. 51º/1 CPTA [6]

Relativamente à já abordada questão da definitividade vertical, esta será tida como “pressuposto processual de que, em certos casos, a lei faz depender a possibilidade de um acto administrativo que, do ponto de vista substantivo, é impugnável, ser objecto de impugnação imediata perante os tribunais administrativos”, “questão de natureza adjectiva e não substantiva” logo não será parte integrante do conceito de acto administrativo impugnável. [7]


4. Matriz do modelo actualmente em vigor

Presentemente, o CPTA não faz menção ao requisito de definitividade como anteriormente vinha plasmado no art.25º/1 LPTA e desaparece da lei o pressuposto impugnação administrativa necessária para admissão da impugnabilidade de actos administrativos presente no art. 34º LPTA. [8]

Da conjugação dos arts. 51º e 59º/4 e 5 CPTA (deste último retira-se que a impugnação administrativa, quer por via de reclamação quer por via de recurso que agora nos ocupa o estudo, suspende o prazo de impugnação judicial do acto, mas não impede o interessado de proceder a esta na pendência daquela [9]) decorre que a regra geral passou a ser a da impugnação administrativa facultativa, não sendo a utilização das vias de impugnação administrativa requisito necessário para aceder à impugnação contenciosa, ou seja, na prática, não será necessário esgotar as vias extrajudiciais para se recorrer à tutela jurisdicional; impugnação administrativa facultativa será a regra também porque decorre da regra do art.170º/1 CPA a suspensão da eficácia do acto nos casos de recurso hierárquico necessário (a não ser nos casos em que cause “grave prejuízo ao interesse público”), nunca se colocando um problema de suspensão do prazo de impugnação judicial pois este teria à partida a sua eficácia suspensa.        
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      
5. Considerações acerca do recurso hierárquico necessário

Se partirmos da definição de recurso ensaiada por DIOGO FREITAS DO AMARAL recurso será um “meio de impugnação de um acto de autoridade perante outra autoridade para o efeito competente, a fim de obter desta a respectiva revogação ou substituição”, [10] recurso hierárquico será então um recurso administrativo mediante o qual se impugna o acto de um órgão subalterno perante o seu superior hierárquico a fim de obter deste a respectiva revogação ou substituição; [11] da conjugação das duas noções retiram-se as seguintes conclusões: recurso hierárquico será um meio de impugnação administrativa (a par da figura da reclamação – arts 161º e ss CPA) no qual se reconhece um certo grau de subordinação do recorrente perante o recorrido e uma expressão do exercício do poder se superintendência do superior hierárquico para o qual se recorre relativamente ao subalterno que praticou determinado acto do qual se recorre, com vista à eliminação da ordem jurídica, quer por via da revogação quer através da sua substituição (esta última possibilidade limitada pela competência exclusiva do órgão recorrido para a prática do acto nos termos do art. 174º/1 CPA), do quid impugnado, do resultado do exercício das competências do subalterno.

Fenómenos de desconcentração relativa (veja-se a figura da delegação de poderes, com respectivo regime jurídico presente no art. 35º e ss CPA) onde, ao contrário do que sucede nos casos de desconcentração absoluta, se mantém relações de hierarquia, implicam que se dê relevância à figura do recurso hierárquico de modo a cumprir os desígnios constitucionais da existência de fenómenos de desconcentração a par da respectiva necessidade de manutenção de “poderes de direcção, superintendência e tutela dos órgãos competentes” com expressão no nº2 do art. 267º CRP.

Mas se é verdade o que se acaba de dizer, dessas mesmas considerações não se pode retirar a legitimidade do carácter necessário do recurso hierárquico. Tentaremos procurar fundamentos alternativos para explicar a relevância prática da figura, não sem antes explicitar alguns dos argumentos doutrinais que apontam para a sua inconstitucionalidade.

Cabe fazer mais uma nota relativa ao recurso hierárquico no que toca à diferenciação de regimes que resulta das normas do CPA, na defesa da uniformização dos regimes dos recursos hierárquicos, ainda que só no que toca ao efeito suspensivo da eficácia do acto administrativo recorrido, no sentido de adopção do regime do recurso hierárquico necessário que segue no sentido da suspensão da eficácia do acto recorrido (art. 170º/1 CPA) o que na perspectiva do interesse do recorrente o beneficiará na medida em que, para obter, no âmbito de um recurso hierárquico facultativo, o efeito suspensivo, terá de requerer a suspensão administrativa da execução nos termos do art. 163º/ 2 e 3 CPA ou medidas cautelares para obter o efeito que é automático para os recursos hierárquicos necessários. [12]
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[1] Versava o artigo no seu nº1 o seguinte: “Só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios”.

[2] Na versão originária da CRP - Lei Constitucional 1/76, de 2 de Abril - o então nº 2 do artigo 269º estatuía: "É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios".

[3] Da definitividade horizontal não cumpre discutir na medida do abandono do seu pressuposto assente no princípio da impugnação unitária do acto final em favor da impugnação autónoma de actos (sobre isto ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos tribunais administrativos 4ª ed. rev. e actualizada. –  Lisboa, Almedina,  2005, e atender ao disposto no art. 51º/1 e 3 CPTA, acerca da impugnabilidade não preclusiva dos actos procedimentais e do tratamento igualitário em termos processuais da decisão final e das demais decisões que integrem o procedimento - decisões intra-procedimentais)

[4] Posição de ANDRÉ SALGADO DE MATOS exposta em MARCELO REBELO DE SOUSA, ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito administrativo geral, Vol. 3: Actividade administrativa, Lisboa, 2007.

[5] A título de exemplo dessa concordância sistemática com a posição ora defendida veja-se a referência feita “às ordens dadas pelos superiores hierárquicos aos seus subordinados em matéria de serviço e com a forma legal”, nos termos do art. 124º/2 CPA.

[6] Nesse sentido MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que aponta a definição do 51º/1 CPTA como comprovação da existência de actos administrativos com eficácia interna, não havendo portanto coincidência entre a noção do art. 120º CPA e o art. 51º/1 CPTA; também defendendo esta posição VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa: lições 10ª ed. –  Coimbra,  Almedina,  2009, pag. 211.

[7] em MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável.

[8] art. 34º LPTA: “(Precedência de impugnação administrativa): O recurso contencioso, quando precedido de impugnação administrativa necessária, depende da observância, quanto a esta, das disposições seguintes que sejam aplicáveis ao caso:
a) A petição pode ser apresentada perante o autor do acto impugnado ou perante a autoridade a quem seja dirigida, no prazo de um mês, se outro não for especialmente fixado;
b) O recurso hierárquico de acto praticado por órgão da administração central pode ser directamente interposto para o órgão competente para a decisão final.”

[9] defendendo a inexistência de vantagens reais para o particular da possível simultaneidade de impugnação administrativa e contenciosa, VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa: lições 10ª ed. –  Coimbra,  Almedina,  2009, pag. 228.

[10] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Conceito e natureza do recurso hierárquico,  Coimbra,  Atlântida,  1981.

[11] idem

[12] MARCELO REBELO DE SOUSA, ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito administrativo geral, Vol. 3: Actividade administrativa, Lisboa, 2007.

Andreia Almeida
Nº17179

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