quinta-feira, 21 de abril de 2011

Da condenação à prática de acto devido

Da condenação à pratica de acto devido

1.            Âmbito de aplicação
O contencioso administrativo passou da mera anulação para a plena jurisdição; deixa de estar limitado na sua tarefa de julgamento como inicialmente estava, superando em grande parte os dogmas do contencioso francês.
No passado, entendia-se que o juiz só poderia anular actos administrativos, mas não podia dar ordens às autoridades administrativas no sentido de agirem de um modo ou de outro. Esta visão era partilhada mesmo por quem apontava insuficiências ao contencioso “meramente cassatório”.
Contudo, como o Professor Vasco Pereira da Silva defende no manual, estas posições deviam-se à confusão entre julgar e administrar. Ou seja, não podemos confundir o facto de o tribunal condenar a Administração com “substituir” a administração na prática do acto devido.
Também temos que considerar que estão em causa duas realidades muito diferentes: uma coisa é condenar a Administração à pratica do acto legalmente devido, decorrente da “preterição de poderes legais vinculados”, e que, como o Professor indica, corresponde à tarefa de julgar; outra, é o tribunal praticar os actos em vez da Administração ou “invadir o domínio das escolhas remetidas por lei para a responsabilidade da Administração” no campo da discricionariedade administrativa.
Há que referir que estando em causa actos dentro do domínio da discricionariedade administrativa também pode haver condenação nos aspectos vinculados, visto que não está à margem da lei, e têm que seguir alguns parâmetros legalmente vinculados.
Não vemos qualquer razão para considerar que ao se admitir que haja sentenças de condenação e não de mera anulação se está a violar o principio da separação de poderes. Como vimos, o tribunal não está a invadir o campo de acção administrativo. Está a julgar, que é a tarefa dele, a actuação da Administração. O Tribunal também não pode fazer juízos de mérito sobre as opções (quando em causa está um acto discricionário), simplesmente condena a que seja escolhida uma das hipóteses que a lei deixa à escolha da Administração (não diz directamente qual deve ser escolhida). Como tal, não viola a separação dos poderes que alguns autores invocavam estar a ser violado.
Inicialmente a condenação da Administração só era aceite limitadamente, sendo o recurso de anulação o centro do nosso contencioso.
Com a Constituição de 1976, começa a existir uma necessidade de analisar as falhas do contencioso e desenvolver uma formula que se adaptasse melhor às realidades da época. Com a reforma de 1982, o legislador da reforma do Contencioso Administrativo (1984-85) adoptou um novo meio processual chamado “acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos), que se destinava a assegurar a tutela efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas
Este meio era complementar aos restantes e permitia alargar o âmbito da condenação ao acto administrativo devido, como por exemplo, nos casos de omissão ilegal, em que o particular poderia optar entre intentar directamente a acção para o reconhecimento de direitos ou utilizar anteriormente a via tradicional (recurso de anulação do indeferimento tácito).
Com a revisão de 1997, estabeleceu-se expressamente a possibilidade de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido na constituição, como sendo componente essencial do principio da tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares em face da Administração (artigo 268º, nº4 CRP). Esta norma constitucional é de aplicação imediata o que, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, podia significar duas situações: a criação de um novo meio processual, de natureza condenatória, criado directamente pelo legislador (posição do Professor Sérvulo Correia); ou, entendendo-se que uma “coisa era o direito a obter uma condenação jurisdicional da Administração que passava a ser garantido pela lei fundamental (…), outra era a criação de um novo meio processual de natureza condenatória que, sendo devida, estava dependente da (necessária) intervenção do legislador ordinário da reforma do Contencioso Administrativo)”.
Nesta querela, na minha modesta opinião, tenho que simpatizar com a posição do Professor Sérvulo Correia. Parece-me que ao instituir na Constituição a condenação à prática do acto administrativo legalmente devido, o legislador constituinte marcou uma clara posição no sentido de criar um novo meio paralelo aos outros meios processuais e não um mero instrumento a usar dentro desses meios já existentes. Contudo, parece-me também claro que ainda que instituindo este novo meio seria necessário concretização por parte do legislador ordinário para reforma do Contencioso Administrativo de modo a incluir no CPTA os trâmites deste meio processual.
Porém, a verdade é que foi após um longo processo de negociações e estudos que surgiu a acção de condenação à prática do acto administrativo legalmente devido como modalidade da acção administrativa especial, no CPTA.
Existem duas modalidades de acção administrativa especial de condenação à prática do acto administrativo devido, consoante esteja em causa a necessidade de obter a prática de um acto ilegalmente omitido ou recusado (artigo 66º, nº1 CPTA). Estas modalidades correspondem, segundo o Professor, em dois pedidos imediatos principais: “o de condenação na emissão de acto administrativo omitido; e o de condenação na produção de acto administrativo (de conteúdo) favorável ao particular em substituição do acto desfavorável anteriormente praticado”.
O pedido imediato da acção de condenação é o que se destina a obter a condenação da entidade competente de um acto, como o artigo 66º descreve, ilegalmente omitido ou recusado, num determinado prazo. Sendo que o acto devido é aquele que, na perspectiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, por pura omissão ou, tendo sido praticado, não tenha correspondido à pretensão do autor.
Contudo, o pedido mediato (o direito subjectivo que se pretende tutelar através da acção) é sobrevalorizado ao imediato, sendo que se amplia o objecto do processo incluindo a causa de pedir.
O objecto do processo não é em caso algum o acto administrativo, é sempre o direito do particular a uma conduta da Administração. Segundo o Professor Mário Aroso de Almeida, “o processo de condenação não é configurado como um processo impugnatório” ou seja, o objecto do processo não se define por referencia a um acto (cf. artigo 71º/1 CPTA). Daí que não seja necessário existir um acto prévio da Administração, e mesmo existindo não tem autonomia em termos processuais, na acção de condenação, sendo automaticamente eliminado da ordem jurídica pelo provimento do pedido do particular relativo ao direito subjectivo lesado. O objecto do processo corresponde à pretensão do interessado.
O tribunal vai além da análise do acto, ou da omissão. O tribunal vai analisar a relação concreta entre o particular, o seu direito e a Administração e os poderes desta, ou seja, faz um juízo da relação administrativa.
Podem integrar no objecto do processo, segundo o artigo 70º, pedidos “relativos não apenas a actos de indeferimento” mas também de “deferimento parcial” das pretensões dos particulares, que sejam praticados pela Administração na pendência do processo. A acção pode embarcar também actos posteriores à sua propositura e não só os anteriores.
Como o Professor Vasco Pereira da Silva refere, “pretende-se assim que o objecto do processo das acções de condenação corresponda à concreta relação jurídica material, tal como se configura no momento em que a decisão vai ser proferida, para que não se verifique um desfasamento entre aquilo que está em juízo e a relação material (…) susceptível de pôr em causa o efeito útil da sentença.”
É importante referir que o pedido de condenação prevalece sobre um pedido de anulação que seja feito pelo autor. Contudo, temos que atender também ao artigo 51º/4, que refere que “se contra um acto de indeferimento for deduzido um pedido de estrita anulação, o tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de formular o adequado pedido de condenação à pratica do acto devido e, se a petição for substituída, a entidade demandada e os contra-interessados são de novo citados para contestar”. Ao estabelecer esta situação, o Código considera que aquilo que é objecto de apreciação jurisdicional, “em todas as situações em que a Administração se encontra vinculada a actuar de um modo favorável ao particular, não é o acto administrativo, ou a falta dele, mas sim o próprio direito do particular”(segundo o Professor Vasco Pereira da Silva).
Em qualquer dos casos que leve à propositura de acção de condenação, é sempre necessário que tenha havido uma preterição de uma vinculação  legal. Como o Professor explica, a “medida” da condenação corresponde ao âmbito da vinculação da Administração.
Temos que ressalvar o âmbito discricionário da Administração, sendo que, como já dissemos, pode ser alvo de condenação mas em termos mais limitados. Nestes casos a condenação será mais genérica, simplesmente obrigando a Administração a tomar uma decisão, dentro das várias possíveis legalmente (artigo 71º/2).
Segundo o Professor, podemos considerar que existem duas modalidades de sentenças (quanto ao conteúdo) resultantes do pedido de condenação: aquelas cujo conteúdo é determinado pela sentença (prática de acto vinculado); e aquelas “cujo conteúdo é relativamente indeterminado, na medida em que estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração”, onde o tribunal apenas deve apontar a forma correcta do exercício do poder discricionário, fazendo nota das vinculações legais e parâmetros legais que a Administração não se deve esquecer de cumprir (prática de acto discricionário).
Em conclusão, podemos referir que se antes da reforma o Contencioso Administrativo demonstrava sinais de extrema esquizofrenia, com ficção de actos para que o particular pudesse aceder à acção de anulação de actos, com a reforma do contencioso, como o Professor Vasco Pereira da Silva defende, já muitos dos sintomas foram suavizados e mesmo tratados. Actualmente, ainda que seja possível apontar algumas fraquezas desta modalidade da acção administrativa especial, temos um Contencioso muito mais organizado e garantístico dos direitos dos particulares.

Renata Simões
nº17514

Bibliografia:
Silva, Vasco Pereira, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise"
Andrade, Vieira de, "Justiça Administrativa"

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