quinta-feira, 21 de abril de 2011

INTERESSE PROCESSUAL NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

INTERESSE PROCESSUAL NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO


Inserido no âmbito dos pressupostos processuais, o interesse processual (ou interesse em agir, como prefere alguma doutrina, seguindo a expressão alemã) é uma temática que parece, hoje, reunir maior consenso na doutrina (tanto na civilista como na administrativista), embora o legislador não tenhas tido a ousadia de arrumar, definitivamente, a questão. São os “traumas de infância” que o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA afirma terem estado presentes na construção da legislação adjectiva administrativa.
A discussão inicia-se junto dos processualistas que procuram distinguir legitimidade de interesse processual. Definem este último como a "necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção", a fim de pôr termo a uma "situação objectiva de carência em que o litigante se encontra". Falam numa "necessidade justificada, razoável, fundada" de lançar mão do processo ou e fazer prosseguir a acção (Senhores Professores ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA).
A diferença entre os dois pressupostos processuais (assumindo, desde já, o interesse processual como um pressuposto processual) reside no facto da legitimidade aferir-se em relação à parte que é titular da relação material controvertida ou que é titular do dever na relação material controvertida, seja um interesse directo ou pessoal. Por outro lado, no interesse processual não se discute a titularidade do direito, mas sim a "necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial".[1]. A questão surge, portanto, em relação a uma necessidade actual que, só através da via contenciosa, é possível dirimir e daí retirar uma certa utilidade. O titular do direito, além de ter de demonstrar que está preenchido o pressuposto da legitimidade (nos interesses que nela se verificam), tem de dizer o porquê de recorrer à via judicial. O que sucederá, reafirmamos, quando, numa expressão em tudo semelhante com os processualistas, se “houver uma situação de incerteza, uma ameaça ou o fundado receio de que a Administração adopte uma conduta ilegal lesiva”[2]
                As razões de existência deste pressuposto processual visam impedir a instauração de acções inúteis que causa sempre prejuízos e incómodos à parte passiva, neste caso, a Administração, na relação controvertida; e por uma razão de economia processual (que se poderá, até admitir, inserida no âmbito da boa fé como o faz, com mérito, o Senhor Professor VIEIRA DE ANDRADE, em ob. citada), porque sendo a Justiça um serviço estatal, manifestação da soberania de um país, paga pelo erário público, só deve funcionar quando houver motivos para tal, ou seja, quando os direitos se encontram realmente carecidos de tutela judiciária.
                Não surpreende, pelo supra citado, que este pressuposto tenha enorme relevância no âmbito do contencioso administrativo. Ele afirma-se perante uma agressão feita ao titular do direito, que utiliza-o de forma reactiva, e questiona-se (Senhor Professor AROSO DE ALMEIDA, ob. citada) no caso de acções preventivas, ou de simples dizer o Direito, no propósito de afastar equívocos e riscos só potencialmente lesivos”. Não se vê, em nossa humilde opinião, porque razão, perante uma potencial violação de um direito e perante a impossibilidade de recorrer a outros meios, o titular não possa avançar judicialmente, por forma a sanar a incerteza, a ameaça ou o fundado receio que incidia sobre a sua esfera jurídica. Não o mero facto consumado deve ser tutelado. Deve ser dada guarida à lesão potencial e hipotética, que, por uma questão de tempo, se converterá em definitiva. A função preventiva deve, não se vê o porquê em contrário, merecer o abrigo que o interesse processual oferece a quem o invoca.
Na nossa legislação, o interesse processual encontra-se, timidamente, consagrado, no art. 39º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), em relação à acção administrativa comum. Essa timidez, ou seja, o facto de não se ter consagrado como um pressuposto processual geral do Contencioso Administrativo, resulta dos “traumas de infância… que de acordo com a concepção objectivista, negava aos particulares a titularidade de direitos nas relações administrativas, mas, como não pretendia consagrar um sistema de acção popular generalizada, via-se obrigada a confundir a legitimidade com o interesse em agir, de forma a limitar o acesso ao juiz”[3]
No art. 39º do CPTA, o interesse processual insere-se no âmbito das acções declarativas ou de simples apreciação. O reconhecimento de uma situação jurídica ou de uma qualidade só vê o horizonte (no interesse processual) quando existe o fundado receio (ameaça ou incerteza), baseado em circunstâncias objectivas, de que a Administração vá adoptar uma conduta ilegal. Para o Senhores Professores VASCO PEREIRA DA SILVA e VIEIRA DE ANDRADE, a questão coloca-se também em relação às acções de condenação ou abstenção de condutas no futuro, tal como já consta no Direito germânico.
Mas o CPTA não se fica por aqui, quanto à consagração envergonhada (segundo o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA) do interesse processual. Na acção administrativa especial faz-se uma referência implícita, relativamente aos pedidos de impugnação e normas, quando se fala em legitimidade (art. 55º/1 al. a)), que engloba “o interesse pessoal e directo no resultado, a necessidade de protecção judicial terá apenas uma função residual, impondo a actualidade ou a probabilidade (e não mera eventualidade) do interesse na anulação do acto ou na declaração de ilegalidade da norma”[4]. Quando se analisa o requisito interesse directo, faz-se um apelo incontornável à actualidade, ou seja: o interesse será actual quando esteja carecido de protecção judicial. Tal significa, em traços largos, que um acto administrativo pode ser impugnado por certas pessoas e não por todas, mesmo que as condições objectivas beneficiem ambos. Além de legítima, a pessoa deve apresentar as razões por que tem de utilizar a via contenciosa.
Poderá questionar-se: o interesse processual coloca-se em razão da eficácia dos actos administrativos que afectam os sujeitos, ou poderá existir também em relação a actos administrativos ineficazes?
O Senhor Professor AROSO DE ALMEIDA, responde afirmativamente. Em seu entender, e que acompanhamos (até por uma questão de coerência, tendo em conta o conceito lato que acima afirmámos em relação ao interesse processual em acções preventivas), existindo uma lesão efectiva resultante de uma conduta ilegítima ou uma ameaça de lesão que por uma questão de tempo, converter-se-á numa circunstância lesiva, há também interesse processual. O paralelismo faz-se nos termos do art. 39º CPTA.
Por último, em termos de consagração legislativa, o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, associa o interesse processual à aceitação do acto admistrativo, previsto no art. 56º do CPTA. Sistematicamente, surge lado a lado com o pressuposto da legitimidade (art. 55º) o que se explica tendo em conta os “traumas de infância difícil” do Contencioso Administrativo, onde não se admitia a titularidade de direitos subjectivos perante a Administração, reconduzindo a doutrina, por isso, a questão da aceitação do acto ao mundo da legitimidade, por não se considerar que o interesse processual formasse um pressuposto processual autónomo.
Ora, a aceitação do acto é a manifestação da falta de interesse processual do interessado. O particular, ao aceitar o acto expressa ou tacitamente, perdeu o interesse na impugnação do acto administrativo. Tal não impede, como alerta o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, que, estando a correr os prazos de impugnação, o particular venha a revogar a sua decisão (p.ex. por uma alteração de cirscunstâncias). Essa aceitação e posterior revogação deve ser vista à luz do interesse processual. O que não poderá acontecer é impedir-se que a aceitação e posterior revogação da aceitação bloqueie a possibilidade de agir contenciosamente, sob pena de violação do art. 268º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
                E o que dizer sobre o interesse processual na temática (que ainda divide a doutrina) do recurso hierárquico necessário vs e do acesso imediato à justiça?
                Para os defensores do recurso hierárquico necessário, quando a lei assim expressamente o preveja (com o expoente no Senhor Professor AROSO DE ALMEIDA), faltará interesse processual quando o particular recorreu à via contenciosa quando a lei exigia que se esgotassem os recursos administrativos. No lado oposto, em defesa do acesso à Justiça, consagrado no art. 268º nº 4 da CRP, encontra-se o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, para quem, haverá, em abstracto, interesse processual, quando o particular, sem esgotar os recursos internos, recorre à via contenciosa. Não temos a pretensão de desenvolver argumentos por ultrapassar o âmbito do tema que aqui nos ocupa. Limitamo-nos a expor as posições antagónicas. Todavia, e de forma muito genérica, ponderando os fundamentos de ambas as partes, parece-nos que a razão pende para o Senhor Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, embora, humildemente consideremos que em termos de política legislativa, e nos casos em que o legislador o preveja, seria preferível o esgotamento das vias administrativas antes do recurso aos tribunais. É uma discussão muito interessante, mas que merece uma reflexão noutro escrito.
Concluindo o estudo que nos ocupou ao longo destes parágrafos: dos arts. 39º, 54º e 56º, pode-se retirar o princípio de existência do interesse processual como um pressuposto processual do Contencioso Administrativo, de que as normas são pedras basilares de uma regra geral (com principal eixo no art. 39º), e não de regras especiais pontualmente consideradas. O legislador não entendeu, para já, consagrar o interesse processual como regra geral. No entanto, parece-nos uma questão de tempo, até que essa questão seja colocada, sem mais dúvidas e hesitações (e por forma a superar os “traumas de infância”, dado o consenso doutrinário e jurisprudencial acerca desta temática.

João Luís Mendonça Gonçalves
Subturma 4, nº 17362


[1] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª edição, 2005.
[2] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), 9ª Edição, Almedina, 2007, Coimbra.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009, Lisboa.
[4] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), 9ª Edição, Almedina, 2007, Coimbra.

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