sexta-feira, 22 de abril de 2011

Do recurso hierárquico necessário – Parte II: Exposição da controvérsia e conclusões finais

1. Da inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário


Muito critico no que diz respeito à manutenção da figura e defendendo a sua inconstitucionalidade, VASCO PEREIRA DA SILVA afirma que da conjugação dos arts. 268º/4 CRP e 51º/1 CPTA retira-se a possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos desde que lesivos para os particulares, o que se traduz na inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário enquanto forma de condicionamento à tutela judicial imediata, manifestações dos tais “traumas de infância” do Contencioso Administrativo que o Professor faz questão de relembrar sempre no sentido de os exterminar do ordenamento jurídico. Para apoiar a sua tese, utiliza como argumentos, entre outros, a existência de uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso como conformado pelo art. 268º/4 CRP enquanto expressão do princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares, numa violação do princípio da separação de poderes por fazer precludir o direito de acesso aos tribunais em resultado da não utilização de uma garantia administrativa, uma negação do princípio da desconcentração administrativa presente no art. 267º/2 CRP. [1]


2. Em defesa do recurso hierárquico necessário

Entre os vários argumentos que têm sido invocados na defesa do recurso hierárquico necessário, destacam-se os seguintes:

Manifestação de uma procura pelo legislador de meios alternativos de resolução de litígios, opção legítima atendendo ao princípio da economia processual, numa dupla função de evitar a pendência de recursos hierárquicos desnecessários e de racionalização do funcionamento dos tribunais administrativos, argumento que se poderá apoiar constitucionalmente no art. 266º/2 CRP enquanto expressão dos princípios da repartição eficiente dos poderes públicos e da legalidade administrativa.


Interpretação do art. 267º/2 CRP e do princípio da unidade da acção administrativa, possibilitando uma uniformização da actividade administrativa pela própria Administração, permitindo que seja a própria a dar solução aos problemas que se verificarem no seio da sua organização, levando assim à auto-viculação da AP.


Da análise da posição de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA retiram-se as seguintes premissas: o CPTA deixa de fazer referência ao requisito definitividade, como acima se fez alusão, e não exige em termos gerais a necessidade do recurso hierárquico tendo havido de facto uma inversão da regra; paralelamente não terá o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que determinam a necessidade do recurso hierárquico que só deixariam de vigorar no ordenamento perante disposição expressa no sentido da sua revogação; assim a regra será a da impugnação contenciosa imediata de actos com eficácia externa, sem necessidade de recurso administrativo prévio, salvo nos casos de previsão expressa da lei no sentido da manutenção da necessidade do recurso hierárquico enquanto opção legislativa consciente, deliberada e justificada e, concluindo no sentido da não inconstitucionalidade da imposição de recursos hierárquicos necessários.

Contra este último argumento invoca-se que, apesar da ausência de determinação legal expressa no sentido da revogação, tal solução retira-se do espírito do novo CPTA.
Não nos parecendo um argumento decisivo a não revogação expressa pela lei dadas as conhecidas e infelizes falhas na técnica legislativa e coerência do sistema, já nos parece mais forte a observância da permanência da utilização do regime do recurso hierárquico necessário, no sentido de uma deliberada opção pela permanência do regime, embora tal argumento possa padecer das mesmas incongruências apontadas acima. Ressalvando a ideia de que o olhar para a lei deveria ser no sentido de confiar que o legislador concluiu o seu labor na medida da perfeição, não nos apraz o espírito deixar de olhar esse trabalho com um olhar crítico e interrogador.


VEIRA DE ANDRADE corrobora a tese de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e defende a manutenção do regime do recurso hierárquico necessário somente nos casos de determinação legal expressa nesse sentido, posição que nos parece lógica e com a qual concordamos [2]

Razões de celeridade: a impugnação contenciosa demorará, em média, menos tempo que uma impugnação pela via judicial, ainda para mais com o apoio de mecanismos como os do art. 169º/2 CPA [3]: se formos a crer na notícia que saiu dia 21 deste mês num jornal de distribuição gratuita com o título “lentidão caracteriza cada vez mais a Justiça” em que se dizia que “por cada 100 processos que chegam ao fim nos tribunais portugueses, 184 ficam pendentes”, não nos é difícil de afigurar que, nos moldes como hoje funcionam os tribunais judiciais, a opção pela resolução extrajudicial de litígios não será a mais penosa temporalmente para o particular e que tem sido uma via particularmente privilegiada em reformas processuais.

Regime do art. 167º/2 CPA: funciona no ordenamento jurídico português a regra do carácter misto do recurso hierárquico, [4] traduzindo-se a exigência de recurso hierárquico necessário na possibilidade da Administração Pública de revogar actos ilegais e mesmo, mais amplamente do que sucede no recurso contencioso, que é de mera legalidade, a oportunidade de revogar actos inconvenientes, o que beneficiará aos administrados; afirma FREITAS DO AMARAL que um recurso com base em questões de mérito assentará na “conformidade com todo um conjunto de valores não consubstanciados em normas jurídicas, mas sem cujo respeito ou observância o acto administrativo não pode considerar-se imaculado à luz dos interesses públicos confiados à Administração Pública”. [5] [6]
O mérito traduz-se assim na “adequação do acto aos fins que deve prosseguir, dentro dos princípios que lhe cabe respeitar”, [7] numa ponderação entre o interesse público e uma actuação menos gravosa para os interesses privados, (nas palavras do Professor Marcelo Caetano, “o acto pode na verdade ser legal, correspondendo ao exercício de um poder discricionário, e, todavia, por deficiência de informação ou erro de apreciação de quem o praticou, conter injusto e necessário agravo a legítimos interesses particulares [8]), expressão do princípio da proporcionalidade a que a Administração está igualmente vinculado – art. 266º/2 CRP- devendo dar-se a possibilidade à Administração, através das entidades no topo da hierarquia administrativa, de realizar esse juízo de adequação e reformular decisões de órgãos inferiores que não respeitem da melhor forma o principio da proporcionalidade. É daqui que se parece retirar a relevância prática da exigência de recurso hierárquico necessário: da decisão que saia de um recurso hierárquico necessário pode sair uma decisão que cumpra a objectivo da Administração na prossecução do interesse público a par duma decisão que tenha em atenção a protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (art. 266º/1 CRP).


3. A jurisprudência do Tribunal Constitucional: Acórdão do TC nº 499/96

No acórdão em causa questionou-se a constitucionalidade de uma norma que impunha a interposição de recurso hierárquico necessário de actos que versassem sobre determinadas matérias legalmente especificadas, ainda que tais actos tivessem sido praticados ao abrigo de delegação de poderes (sendo para todos os efeitos actos definitivos nesses termos) mas que, na medida em que encontrava prevista a exigência de recurso hierárquico necessário, não seriam definitivos e consequentemente insusceptíveis de impugnação contenciosa nos termos do então vigente art. 25º/1 LPTA (diz o acórdão assim: “resolução por delegação (de poderes), que, em princípio, teria as necessárias características de definitividade e executoriedade, não é acto definitivo e executório, pois dele há recurso hierárquico necessário” na medida em “actos administrativos sujeitos a recurso hierárquico necessário não traduzem a definição última da relação jurídico‑administrativa concreta, não sendo, portanto, definitivos e executórios”, o que, na prática resultaria na existência de actos administrativos praticados por delegação de poderes directamente recorríveis e actos praticados por delegação de poderes que dependeriam de interposição de recurso hierárquico), o que atentaria contra o direito fundamental de acesso aos tribunais em geral plasmado no art. 20º/1 CRP e, em especial contra o direito de acesso aos tribunais administrativos nos termos do art. 268º/4 CRP.

O TC decidiu no sentido da não inconstitucionalidade da norma que previa a necessidade de recurso hierárquico utilizando como principal argumento o facto de a exigência deste “não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso”, não sendo violado o direito de acesso aos tribunais tal como conformado pelo art. 268º/4 CRP: não seria directamente recorrível pela via contenciosa, mas ainda assim não haveria verdadeira negação desse direito fundamental. Continuaria assim a existir “tutela jurisdicional efectiva” como exige o art. 268º/4 CRP ainda que não imediata no tempo.


4. Conclusões

Do respeito pelos arts. 18º/2, 266º/2 e 268º/4 todos da CRP, poder-se-à retirar um critério de utilização do regime do recurso hierárquico necessário, com respeito pelo princípio da proporcionalidade a que a Administração está vinculada, com consequente respeito pelos requisitos de adequação, necessidade e razoabilidade e justo equilíbrio aquando do recurso à figura, retirando-se desta o máximo dos proveitos elencados acima que dela podem resultar.

Carecendo a questão de esclarecimentos por parte da lei que apontem numa direcção ou noutra, em nome da certeza jurídica, e que encerrem, pelo menos em termos positivados, controvérsias e opções jurídicas num ou noutro sentido, parece-nos coerente com o espírito do sistema visto como um todo, nunca descurando o que foi um sentido de progressivo alargamento da possibilidade de impugnação directa e imediata perante os tribunais dos actos administrativos com o consequente aprofundamento das garantias dos administrados, a defesa da bondade da figura do recurso hierárquico necessário e duma interpretação conforme à Constituição do mesmo.

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[1] Não fazendo sentido continuar num exercício de transcrição das diversas posições quando o que se pretende é um exercício de reflexão, para uma completa exposição dos moldes como se tem desenvolvido esta discussão, VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise :  ensaio sobre as acções no novo processo administrativo,   2ª ed.,  Coimbra,  Almedina, 2009, pags. 347 e seguintes.


[2] VIEIRA DE ANDRADE, A justiça administrativa: lições 10ª ed. –  Coimbra,  Almedina,  2009, pag. 229.

[3] o recurso hierárquico necessário, salvo em situações de delegação ou subdelegação, operará como um recurso per saltum, por razões de desburocratização e celeridade.

[4] para mais desenvolvimentos DIOGO FREITAS DO AMARAL, Conceito e natureza do recurso hierárquico,  Coimbra,  Atlântida,  1981.

[5] idem

[6] para mais sobre a vinculação da Administração ao interesse publico cf. arts. 266º/1 CRP, 269º/1 CRP, art. 4º CPA, entre outros.

[7] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Conceito e natureza do recurso hierárquico,  Coimbra,  Atlântida,  1981.

[8] MARCELO CAETANO, Manual de direito administrativo,  Vol. 2: Agentes e bens, serviços públicos, polícia, garantias, processo administrativo, 1890.


Andreia Almeida
nº 17179

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