sábado, 14 de maio de 2011

As providências cautelares no âmbito do contencioso administrativo

No ano de 2000 aguardavamos por uma reforma da tutela cautelar das situações jurídicas administrativas. Pois bem, a tão esperada reforma surgiu com a nova lei processual administrativa (Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei 4-A/2003 de 19 de Fevereiro) ou seja, o CPTA. Esta reforma identifica-se com a realização constitucional, internacional e comunitária de criação de um sistema de tutela jurisdicional – principal – e cautelar plena e efectiva.

Vamos então proceder a uma análise sintética do Título V do CPTA – dos processos cautelares.

Ideia de PLENITUDE

A ideia de plenitude traduz-se numa autonomia formal do sistema criado pelo CPTA relativamente ao Direito Processual Civil.
Antes da reforma só as providências cautelares do CPC, aplicáveis com as necessárias adaptações ao processo administrativo, ajudavam a combater a solidão da suspensão jurisdicional da eficácia, impotente para fazer face ao desdobramento das formas de actuação administrativa para além do acto administrativo.
O art. 112º/2 CPTA apresenta um elenco exemplificativo de providências cautelares que revela a ideia de plenitude.
As providências cíveis e administrativas concorrem em pé de igualdade, subordinando-se a escolha do julgador ao critério da adequação (subconcretização do Princípio da Proporcionalidade). Este é o significado que Carla Amado Gomes dá à fórmula do nº2 do art. 112º do CPTA “ Além das providências especificadas no CPC, com as adaptações que se justifiquem, nos casos em que se revelem adequadas”, o juíz administrativo tem à sua disposição uma profusão de medidas potencialmente aptas a proporcionar tutela cautelar para as mais variadas situações. A existir qualquer tipo de subsidiariedade entre providências do CPC e do contencioso administrativo ela ocorrerá dentro da lógica de um sistema aberto, norteando-se apenas pelo critério de maior adequação, que, naturalmente, tende a corresponder a melhor tutela ( subsidiariedade material – art. 20º CRP).

A plenitude manifesta-se igualmente no que toca às modalidades de tutela. Desde logo podem, nos termos do art. 112º/1 CPTA, traduzir-se, quer em medidas de tipo conservatório – as quais congelam o estado das coisas existentes no momento da apresentação do pedido até resolução final do litígio – ,quer em medidas de tipo antecipatório – que activam o desenvolvimento da situação controvertida, alterando o estado de coisas existentes no momento da apresentação do pedido, consumindo, total ou parcialmente, o conteúdo da decisão final.
A possibilidade prevista no art. 120º/3 de cumulação de providências, a requerimento do interessado ou por iniciativa do juíz, após prévia audição dos interessados é outra das manifestações da plenitude. Esta manifesta-se igualmente no desdobramento de possibilidades de decretamento provisório (suspensão provisória de execução do acto administrativo) de acordo com o art. 131º/1 CPTA ou definitivo (sendo certo que estamos dentro de um processo de natureza cautelar e como tal confere um conteúdo precário a esta decisão).  A plenitude revela-se ainda na cobertura de todas as formas de actuação administrativa: acto, regulamento, contrato, operação material e actuação informal, designadamente avisos ao público.

A LPTA não admitia a suspensão da eficácia de regulamentos ainda que imediatamente exequíveis. Com o CPTA, não só é possível pedir a suspensão da eficácia de normas que já tenham sido desaplicadas em três concretos com fundamento em ilegalidade, no âmbito de um processo, actual ou futuro, de declaração da sua ilegalidade com força obrigatória geral (art. 130º/2 e 3), como é também admissível que um destinatário de uma norma alegadamente ilegal e de efeito imediato lesiva dos seus direitos, requeira ao tribunal a sua suspensão, com efeitos restritos ao seu caso (art. 130º/1).

No que toca ao contrato, a protecção cautelar neste âmbito estava reduzida à suspensão jurisdicional da eficácia dos actos destacáveis, com todas as insuficiências que lhe eram inerentes. Hoje introduziu-se processos de tutela sumária e medidas provisórias no contencioso administrativo de formação dos contratos da Administração. O regime das providências cautelares do CPTA, em geral, e o art. 132º, em particular, representação inovações importantes a este nível.

Quanto à protecção cautelar contra actuações e omissões materiais administrativas ilegais, o CPTA, representa uma lufada de ar fresco. A articulação com as acções comuns condenatórias potencia a utilização de providências cautelares não especificadas através das quais o juíz conforma maior ou menor densidade a actuação administrativa.

O aviso ao público surge como uma realidade sui generis, a meio caminho entre o acto jurídico e a operação material, na medida em que os sues efeitos se projectam a nível psíquico, de esclarecimento ou convencimento do público sobre um determinado assunto do seu interesse, cuja tutela se encontra a cargo de entidades administrativas.
A par da intimação para suspensão da difusão do aviso – caso se prove a não veracidade dos dados divulgados pela Administração, ou incorrecção parcial da informação difundida – convencer o julgador da necessidade de emissão de um acto de reposição da verdade, ou pelo menos de confirmação da incorrecção/falsidade do conteúdo do aviso. Qualquer empresa alegadamente lesada no seu direito fundamental de iniciativa económica de poder, não só prevenir o alastramento da informação errónea, como também e sobretudo, exigir da Administração a reposição da verdade, o mais rapidamente possível. A intimação para um comportamento instaurada contra a entidade administrativa decretada provisóriamente ou não abrangendo ambas as vertentes – conservatória e antecipatória – da tutela cautelar, parece a priovidência mais adequada a resolver este tipo de situações.

Estes são alguns exemplos que atestam a plenitude do sistema de protecção cautelar instituído pelo CPTA, contudo tem uma contrapartida: a COMPLEXIDADE.

Ideia de COMPLEXIDADE

Esta pode ser detectada a três níveis:

A complexidade surge quanto aos critérios de ponderação da necessidade, adequação e equilíbrio das providências cujo decretamento se requer. O art. 120º/1 CPTA avança três situações:
a) “actos manifestamente ilegais” deve entender-se como parâmetro de apoio do julgador na emissão da medida cautelar requerida. Este decretamento baseia-se num critério de evidência, que incorpora, em simultâneo, a salvaguarda do interesse público e a tutela de interesses privados. A evidência da ilegalidade justifica quer a possibilidade de decretamento provisório da providência (art. 131º/1) quer à susceptibilidade de antecipação do juízo principal, nos termos do art. 121º do CPTA. O facto de a ilegalidade que enferma o acto ser ostensiva explica que o juízo de proporcionalidade quanto à decisão de emissão da medida se constranja perante a exigência da célere reposição da legalidade. A manifesta ilegalidade do acto, uma vez demonstrada, vincula o juíz a proferir decisão favorável ao requerente da medida cautelar.
Quanto a este critério de evidência surgem algumas dúvidas: será ele apenas aplicável em sede de impugnação de actos, ou também utilizável perante regulamentos, ante normas contidas em regulamentos, operações materiais e actuações informais? Quanto aos regulamentos há que considerar a remissão operada pelo art. 130º/4 para o “disposto no capítulo I”, “com as adaptações que forem necessárias” e, por outro lado, a necessidade agravada de correcção das situações de ilegalidade geradas por tais formas de actuação. Estes são os argumentos que reforçam a possibilidade de “cruzar” o art. 120º/1 a) com a providência de suspensão de eficácia de normas regulamentares. Quanto às operações materiais e actuações informais a “manifesta ilegalidade” é, assim, detectável e atacável, também neste domínio.

b) fora das situações da alínea a) (de ostensiva ilegalidade) quando se requeira a concessão de providência conservatória ou antecipatória. Critério de apreciação da necessidade de tutela em função da procedibilidade da pretensão cautelar. Assim a par da urgência no decretamento da providência há que aferir:
* estando em causa a parelisação dos efeitos de uma actuação administrativa, a não manifesta falta de fundamento desta;
* estando em causa a propulsão de efeitos gerda pela inacção ou actuação administrativa ilegal a procedibilidade provável da decisão final confirmativa do juízo antixipatório proferido.
A razão da distinção quanto aos critérios de ponderação da possibilidade de decretamento da providência reside na maior responsabilização do julgador perante a emissão de uma providência anticipatória que consumirá, total ou parcialmente, a decisão final. A estes critérios acrescem a ponderação da sua adequação e do seu equilibrio, nos termos dos nºs 2 e 3 do art.120º. O julgador está relativamente condicionado: por um lado, pelo pedido apresentado pelo requerente e, por outro lado, por ambas as partes, caso queria proceder à substituição e/ou à cumulação de providências, pois tem que as ouvir previamente. Quanto à proibição de excesso o juíz goza de uma considerável margem de livre decisão, apenas “limitada” pela obrigação de fundamentação da decisão (art.659º/2, bem como a alínea b) do nº1 do art.668º, ambos do CPC), bem como, obviamente, pelo direito de recurso.

O CPTA gizou um esquema de protecção cautelar teóricamente equilibrado, embora na prática, reconhecamo-lo, susceptivel a desiquilibrar mais facilmente a favor da tutela do interesse público.

Sublinhe-se a complexidade ao nível da articulação entre providências cautelares e restantes processos urgentes, designadamente, impugnações e intimações:
a) Exemplo da primeira situação é o da articulação entre as impugnações urgentes de actos administrativos no domínio do contencioso pré-contratual de formação de contractos de empreitada e concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens – arts.100º a 103º do CPTA – e as providências cautelares a que se refere o art. 132º do CPTA. A opção entre estas duas vias – a primeira, sumária; a segunda, cautelar – decide-se com base no tipo de contracto cujo procedimento de formação está em causa. O que, à primeira vista, parece um esquema discriminatório dos intervenientes em contratos que não se reconduzam aos tipos enunciados nos arts.100º a 103º, os quais ficam privados de um mecanismo de defesa ultra-rápido. Assim, são configuráveis, em abstracto, duas situações:
- para os procedimentos pré-contratuais a que alude o nº1 do art.100º do CPTA, os remédios processuais são: processo sumário + providências cautelares previstas no art.132º;
- para os procedimentos pré-contrtatuais que se não reconduzam à previsão do nº1 do art.100º, os remédios processuais são: acção administrativa especial de impugnação de actos + providências cautelares nos termos do art.132º.

b) Um exemplo da segunda situação traduz-se no nexo de subsidiariedade estabelecido entre a intimação para protecção de direitos, liberdades, e garantias e a modalidade de decretamento provisório da providência – arts.109º/1 e 131º/1 do CPTA. Em última análise tal subsidiariedade resolve-se a partir da densificação dos critérios de possibilidade e insuficiência avancados pelo nº1 do art.109º.
Em terceiro e último lugar chame-se a atenção para interpenetrabilidade entre processos acautelares e processos sumários, através da possibilidade de convolação processual aberta pelo art. 121º do CPTA. Esta novidade traduz-se em que “quando a manifesta urgência na resolução definitiva do caso permita concluir que a situação não se compadece com a adopção de uma simples providência cautelar e tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito”, o juíz pode, ouvidas as partes por 10 dias, “antecipar o juízo sobre a causa principal” (art. 121º/1).
A aplicação desta disposição será objecto de muitas cautelas. Estas situações serão avaliadas com uma ponderação acrescida. Esta decisão é passível de recurso nos termos gerais (art. 121º/2).

A complexidade inerente ao novo sistema de protecção cautelar é inevitável, sobretudo se o confrontamos com o regime ainda vigente.
A ver vamos como esta complexidade se traduzirá em efectividade de tutela.


CONCLUSÃO

Estas são algumas observações que nos merece o sistema de protecção cautelar a introduzir pelo CPTA.
Três notas de risco:
i.                    O risco da inundação da jurisdição administrativa por pedidos cautelares 112º/2 CPTA;
ii.                  O risco de sumarização da jurisdição administrativa proporcionado pelo mecanismo do art. 121º/1 do CPTA;
iii.                O risco de subversão dos critérios de ponderação previstos nos nºs 2 e 3 do art. 120º do CPTA.
A banalização da justiça cautelar será uma tentação demasiado fácil para os particulares.

Ana Rita Ribeiro
subturma 7

Sem comentários:

Enviar um comentário