quarta-feira, 25 de maio de 2011

Relação Jurídica Privada vs Relação Jurídica Administrativa


O que a abaixo será exposto basear-se-á no seguinte caso prático:
Por doação, A recebeu de seus pais um imóvel, doação essa feita por escritura pública (tal como obrigava, à época, o art. 947.º, nº1 do Código Civil) celebrada por Notário em 1992. Porém, a propriedade desse imóvel nunca foi registada em sede de registo predial.
Hoje, A pretende registar o imóvel perante o Conservador do Registo Predial, acto que lhe é recusado.
Quid Iuris?
                                                                                                                                          
A questão que aqui se coloca está directamente ligada com o âmbito da jurisdição administrativa e é alvo de um tratamento dogmático e curioso num artigo do Professor Mário Esteves de Oliveira. A questão colocada pelo autor citado prende-se com a interligação entre o foro privado e o foro administrativo no caso acima descrito, uma vez que existe, de facto, uma relação entre privados (a doação feita a A por parte de seus pais) que, para que obtenha a sua plenitude dentro do sistema jurídico, carece de ser registada perante uma entidade pública (através de inscrição no Registo Predial).

A questão-mor aqui será a seguinte: mediante a recusa do Conservador do Registo Predial em fazer este registo (obrigatório pelo disposto no art. 2.º, nº1, al a) do Código de Registo Predial), a que Tribunal se poderá dirigir A para impugnar tal acto? Ao tribunal comum ou ao tribunal administrativo?

Tendo, pois, por base o artigo do Professor Esteves de Oliveira, com cuja conclusão se concordará mais abaixo, importa, primeiramente, estabelecer noções essenciais do Contencioso Administrativo que poderão (ajudar) a corroborar o entendimento exposto.
Neste sentido, comecemos por delimitar, novamente, o âmbito em que se insere o Contencioso Administrativo, sendo que o Professor Vieira de Andrade- preferindo expressão Justiça Administrativa em detrimento de Contencioso Administrativo- o define como sendo “a que integra os processos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas” que, por sua vez, são definidas como sendo “ a generalidade das relações jurídicas externas on intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos”.
Por outro lado e numa visão declaradamente institucionalista, o Professor Sérvulo Correia define-o como sendo “a instituição caracterizada pelo exercício, por uma ordem jurisdicional administrativa, de jurisdição administrativa segundo meios processuais predominantemente específicos”. Face, pois, a estas noções mais gerais, não nos podemos esquecer da base constitucional relevante – o disposto no art. 212.º, nº 3 da Constituição- que dispõe que “ compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.

Tendo esta introdução por base, há que questionar a natureza jurídica das normas atinentes a actos públicos, como é o caso dos registos, que são directamente aplicáveis a actos de Direito Privado, as quais afectarão o interessado que requer o registo, bem como terceiros que poderão, eventualmente, ter interesse nesse mesmo registo.
Citando o Professor Esteves de Oliveira: “Estaremos perante actos administrativos, inseridos em relações jurídico-administrativas, ou perante actos de outra natureza e regime, inseridos em relações jurídico-privadas?

O artigo do Autor procura esclarecer, da melhor maneira possível, esta questão, sendo que a sua conclusão acaba por ser no sentido de estarem em causa a garantia pública de direitos privados que, para ser assegurado, são cometidos esses actos a instituições públicas como o fim de atestarem a certeza e autenticidade da criação, titularidade e conteúdo, por exemplo, da propriedade que o particular terá que registar. O Autor faz questão de focar que o registo público deste tipo de actos visa satisfazer o interesse da colectividade, estando em causa o interesse público, a é pública que os Registos trazem à Ordem Jurídica como um todo considerada e, caso alguma dúvida houvesse, reitera que são órgãos pertencentes a pessoas integrantes da Administração Directa ou Indirecta do Estado e com dependência hierárquica ou tutelar do Ministro da Justiça e do Director Geral dos Registos e Notariado.
Esta explanação torna-se importante na medida em que se questiona é qual é o tipo de relação jurídica que está a ser estabelecida quando há, no caso, a recusa de registo de um acto eminentemente privado, mas dependente de um acto materialmente público.
Neste ponto é importante referir o disposto no art. 140.º, nº1 do Código do Registo Predial, que refere: “ a decisão de recusa da prática do acto de registo nos termos requeridos pode ser impugnada mediante interposição de recurso hierárquico para o Presidente do Instituto dos Registos e Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registo”.  Como é perceptível, não há aqui remissão específica para a jurisdição administrativa, sendo clara a remissão para o tribunal comum (civil).
Pensamos que é preciso aqui distinguir as esferas e que nos movemos, isto é, atender à existência de um acto materialmente privado e outro acto, distinto, materialmente administrativo, no âmbito do art. 120.º do CPA, ou seja, há como que destacar duas relações jurídicas distintas: a relação jurídica civil presente no acto da doação e, outra, referente ao acto administrativo do registo.

Neste sentido, o Professor Mário Esteves de Oliveira considera que ao analisar um acto de registo público não se pode olhar, somente, para a relação civil subjacente, ainda que pareça que a lei a ela se refira ao remeter, imediatamente, para o foro civil e não administrativo.
Face ao exposto, o autor conclui (e parece-nos que com razão), que “os serviços registai, todos eles, actuam sujeitos não às normas disciplinadoras da relação subjacente, mas sim, a normas de direito administrativo reguladoras da relação registal”. Nesta sequência, havendo a recusa da prática de um acto (administrativo), ao abrigo de normas de direito público, o particular deveria estar legitimado para recorrer à jurisdição administrativa, mais preparada, até, para solucionar esta questão, do que ser legalmente remetido para a jurisdição comum onde, um juiz de questões cíveis poderá não ter a formação e preparação requerida para dar a solução correcta para um caso destes.
Ao longo do artigo, o Autor vai citando alteração de pensamento jurisprudencial, na medida em que se considerou, inicialmente, que a actividade registal ao abrigo de normas de direito público não criava nenhuma relação jurídico-administrativa. Porém, hoje, a opinião seguida pelo próprio STA e pelo TC (Acórdão da 1º Secção do STA, de 30 de Janeiro de 1995, bem como o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/2001, publicado a 9 de Maio de 2001, respectivamente) tem sido no sentido de incluir estas relações no âmbito da jurisdição administrativa não se percebendo, no entanto, se o particular pode optar pela via a escolher. Parece-nos que essa será uma opção possível, não obstante o elemento literal da lei.
O Autor foca, ainda, questões relacionadas com a constitucionalidade da opção do legislador, por exemplo, no art. 140.º, n1 do Código do Registo Predial, para “fugir”, exactamente ao elemento literal da remissão para os tribunais de comarca. Não será nesta sede analisado as dúvidas suscitadas pelo Autor, pois a vertente constitucional teria que ser alvo de mais pesquisa e doutrina, pois tudo se volta a basear na interpretação a dar ao art. 212.º, nº3 da Constituição.
Sendo que, ao fim e ao cabo, acabamos por concluir que o particular poderá optar pela via do Direito Administrativo (atendendo ao “eventual” carácter aberto do art. 212.º, nº 3 da CRP), há que ponderar, nesse sentido, qual a acção através da qual o particular poderá obter a sua pretensão que, recorde-se, será o registo da sua propriedade em sede de registo predial.

Neste sentido, consideramos aplicável a acção administrativa especial, ao abrigo do art. 46.º, nº1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA.
No entanto, há que ver qual seria a acção a colocar e parece-nos que seria a inserida no nº 1, al b) do art. 46.º, isto é, uma acção para a prática do acto devido, regulada nos arts. 66.º e ss, sendo expresso no art. 66.º, n1 a viabilidade para actos ilegalmente recusados (o registo). O número 2 deste artigo também não obsta a essa possibilidade, na medida e que a pretensão do particular seria a inscrição, nada mais. A legitimidade, aferida pelo art. 68.º, n1, seria do A, uma vez que ele é “ o titular de um interesse ou direito legalmente protegido, dirigido à emissão desse acto”.
Não parece, neste sentido, que esta solução seja desadequada, mas surge outra questão: poderá ser admissível uma providência cautelar para emissão de um registo provisório?
A provisoriedade do registo está prevista no art. 92.º do Código do Registo Predial e, das suas alíneas, não decorre a possibilidade de “inscrever” provisoriamente a propriedade do interessado. No entanto, o art. 112.º, nº1 e 2 do CPTA tem sido entendido como não sendo taxativo nas suas possibilidades, mas sim exemplificativo, o que poderá vir a permitir essa pretensão do particular até uma decisão proferida em sede de acção principal.
Porém, parece-nos mais adequado o A intentar, logo, acção para a condenação à prática do acto devido.

Bibliografia: VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa- Lições, 11ª Edição, Coimbra: Almedina, 2011
SÉRVULO CORREIA, José Manuel, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: LEX, 2005
ESTEVES DE OLIVEIRA,Mário, A Publicidade, o Notariado e o Registo Públicos de Direitos Privados, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares

Catarina Venceslau de Oliveira, Nº 17220 

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