quinta-feira, 26 de maio de 2011

Parecer Ministério Público


MINISTÉRIO PÚBLICO
PROCURADORIA DISTRITAL DE LISBOA
Rua do Arsenal G, n.º 15
1100 – 038, Lisboa
Telefone: 21 486 23 41


Parecer do Ministério Público n.º 209/2011 

Exmos. Juízes do Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa,
O Ministério Público vem, ao abrigo do art. 85.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e art. 219º/1 da CRP, emitir parecer sobre o processo nº 4459/11.3YYLSB, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
Chegada ao Supremo Tribunal Administrativo a petição inicial que deu início ao presente processo, foi fornecida cópia dessa petição e dos documentos que a instruem a este Ministério Público, nos termos do art. 85.º/1, CPTA, bem como das contestações da entidade demandada.
Ao longo da audiência, o MP depreendeu em relação aos quesitos da matéria da base instrutória, que todos eles se provam com respostas pela negativa, e toma posição:
I – Da reunião do Conselho de Ministros
O MP entende que não houve qualquer reunião do Conselho de Ministros, quer no dia três, quer no dia quatro de Abril, por prova testemunhal do senhor doutor Pedro Mendonça, Ministro das Obras Públicas, que na sessão de audiência e julgamento afirma não ter tido conhecimento da realização, nas datas acima indicadas, de qualquer reunião em Conselho de Ministros.
Ao abrigo do art. 197.º/1 al. c) CRP dá-se competência ao Governo, no exercício das suas funções políticas, para aprovar acordos internacionais, cuja aprovação não seja da competência absoluta da Assembleia da República. Verifica-se, nos termos do art. 165.º/1 al. b) CRP que a matéria de direitos, liberdades e garantias, pode ser regulada pelo Governo mediante autorização da AR conforme o n.º 2 do mesmo artigo.
A contestação afirma que a redução salarial foi efectivada por DC-Lei n.º 143/2011 de 3 de Março, no seguimento da Lei de Autorização Legislativa n.º 105/2011 de 9 de Fevereiro, ao abrigo do art. 165/1 al. b) e n.º 2 CRP.
Nestes moldes, entende o MP, em conformidade com o referido na contestação, que a matéria em causa no litígio se enquadra no âmbito dos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP, estando especialmente em causa o art. 18.º da mesma.
Assim sendo, poderia o órgão executivo legitimamente legislar sobre a referida matéria, nos termos do art. 156.º/1 al. b), mediante autorização da AR. Conclui-se, deste modo, que o Governo tinha competência para aprovar o Acordo internacional com a TROIKA, sob a forma de Decreto-lei, ao abrigo dos art. 197.º/1 al.c) e n.º2 CRP, excluindo-se consequentemente a possibilidade de o acto de redução dos salários revestir a forma de Portaria, tal como é alegado no art. 6.º PI.
II – Da suspensão
O Autor, nos pontos 13º a 16º da sua P.I. afirma que não houve lugar a nenhum tipo de suspensão das obras de construção do aeroporto, juntando as fotografias (Doc. 4) tiradas pelo mesmo, em seguimento de uma deslocalização do mesmo ao local das obras, fazendo esta questão parte da matéria assente (alínea K’ da matéria assente do despacho saneador).
Foi também ouvido Francisco Espertalhão que é filho do Autor e Administrador da Mota-Tacho Gentil, e que testemunhou que as obras continuavam dentro da normalidade, tendo tido apenas indicações para que houvesse uma contenção de custos e a paralisação das obras apenas durante uma semana.
Já na contestação do Réu, vem este dizer, no artº 4, que efectivamente houve continuidade da obra, embora esta seja apenas parcial.
Apresenta-nos o Doc. 3 com o plano de execução parcial e com as respectivas alterações em sede de custos. Embora os custos sejam inferiores, o MP retira deste plano que a construção será levada até ao seu fim, embora que por maior período de tempo.
Em resultado das alegações proferidas pelo Ministro das Obras, na sessão de julgamento, o MP apurou que ao contrário do que é afirmado na contestação, não ocorreu suspensão das obras do novo aeroporto (nem parcial, nem total). O Ministro refere que ocorreu um prolongamento da execução do projecto original, ocorrendo por isso uma “diminuição do projecto”, mas mantendo o mesmo número de trabalhadores, sujeitos à mesma carga horária. O Ministro referiu ainda que “os custos são os mesmos”. Questionamo-nos como é que é isso possível, na medida em que:
 - o projecto original foi pensado para uma execução total da obra, nos prazos inicialmente previstos. Se o projecto foi diminuído, então já não poderá ser o projecto original; nesse sentido, questionamos o porquê de não terem sido realizados novos projectos de engenharia, arquitectura, entre outros. Ainda mais tendo o próprio Ministro dito também que fiscalizou em pormenor os trabalhos na obra, sendo ele um especializado em engenharia civil.
 - mais incrível é o facto de existir uma diminuição do projecto mantendo  o mesmo número de trabalhadores, com a mesma carga horária.
 - Se os custos são os mesmos, tal como afirma o Ministro, então o MP não entende qual o objectivo da referida diminuição do projecto, quando o objectivo da Troika é a poupança do Estado português, o que não poderá ocorrer nos termos supracitados
Ao que parece, no lugar de uma suposta suspensão parcial, o que encontramos é uma mera extensão dos prazos de conclusão da obra, seguindo um projecto desenquadrado e desactualizado com a necessidade de uma redução da obra, mantendo no entanto exactamente os mesmos trabalhadores. Mais se conclui que estas alterações não tiveram expressão nos custos, uma vez que nas palavras do Ministro, estes não se alteraram.
Analisando as declarações proferidas por Manuel Costa, representante da Troika, verifica-se que também ele proferiu ter ocorrido a suspensão parcial da obra. Mais adianta que consistiu numa suspensão de 93% e numa execução de apenas 7%. Esta execução de 7% é destinada a que o aeroporto tenha o mínimo de condições necessárias para o seu funcionamento adequado. Ora, o MP tem dúvidas sobre o que será uma execução do projecto do aeroporto em 7% pois ou o projecto integral continha feições megalómanas, ou caso contrário questionamos se é admissível uma construção de um novo aeroporto com base em 7% do projecto original (a questão é mesmo: que tipo de aeroporto será esse?).
Pronunciamo-nos assim por verificar que na realidade, tal como é invocado pelo Autor na sua Petição Inicial, não ocorreu nenhuma suspensão, muito menos parcial e os trabalhos prosseguem. 
III – Da Cláusula penal
Tentando justificar a opção pela não suspensão total das obras de construção do aeroporto, o réu alega a existência de uma cláusula penal, no contrato de concessão de obras públicas, celebrado com a empresa Mota-Tacho gentil, a qual nos é indicada pelo Doc. 1 da contestação, na sua cláusula 28ª.
Esta cláusula determina que são aplicáveis os montantes e os efeitos do artigo anterior em caso de suspensão total da construção da obra e no caso de resolução do contrato, sendo que a cláusula 27ª impõe o pagamento de 1000.000.000 de euros em caso de incumprimento.
Estamos, por isso, perante uma cláusula penal de valor elevadíssimo, que acarretaria um dano patrimonial enorme nos cofres do Estado.
No entanto, nenhuma contrapartida foi estipulada no caso de haver uma suspensão parcial pelo que o MP congratula o Ministro, enquanto representante do Estado português na negociação do contrato com a Mota Gentil, por ter conseguido que nenhuma contrapartida ficasse estipulada neste caso no contrato a respeito de uma suspensão parcial ou incumprimento parcial do contrato.
Ou seja, em caso de suspensão total existe uma cláusula de 1000 milhões, em caso de suspensão parcial existe uma cláusula de 0 (entenda-se: uma cláusula inexistente). Mais uma vez, o MP questiona o porquê desta situação achando duvidosa esta diferença de tratamento entre os dois tipos de suspensão. 
IV – Dos Salários
Apesar da audiência ter levado claramente outro rumo, visto que o que foi debatido foi a questão das obras no Novo Aeroporto de Lisboa em detrimento dos salários que também era uma das pretensões do autor, o MP como defensor da legalidade, vem tomar parte, com base no parecer do advogado Garcia Pereira, que nos ajuda a enunciar o problema da seguinte forma:
Na eventualidade de terem sido observados os mecanismos legais para proceder à redução salarial – em 10% - dos funcionários públicos, essa medida é inconstitucional.
A remuneração é a contrapartida pela qual os trabalhadores, neste caso, funcionários públicos, exercem a actividade ao seu empregador. É pois, uma componente própria e caracterizadora da relação laboral, na qual deve o trabalhador depositar confiança, assegurada pelo princípio da integralidade e a da não redutibilidade remuneratória. Uma redução de 10% “do montante salarial nos empregos públicos” constitui, sem margem para equívocos, uma redução efectiva e significativa.
Como tem sido seguido pela Procuradoria Geral da República, no Parecer 16/92, “a garantia da integralidade remuneratória resulta, porém, não de qualquer autónomo princípio de irredutibilidade (inscrito ao nível fundamental), ou mesmo de protecção de 'direitos adquiridos' - como se referiu, um princípio vago, abstracto, sem suficiente densidade normativa -, mas da circunstância de uma modificação estatutária, com semelhante conteúdo, traduzir uma violação intolerável, inadmissível e demasiado acentuada do princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de Direito democrático.”
O que se revela na medida é uma modificação unilateral do estatuto típico entre a Administração Pública e os seus trabalhadores (funcionários públicos), desrespeitando, assim, o princípio da intangibilidade remuneratória, e, por consequência, o princípio de confiança ínsito ao Estado de Direito, consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Sendo o Estado uma pessoa de bem e devendo acautelar-se as legítimas expectativas das pessoas que com ele se relacionam – no caso, funcionários públicos – uma redução salarial naquele montante constitui uma evidente inconstitucionalidade material, por violação do art. 2º e do art. 59º nº 1 alínea a) CRP que consagra, constitucionalmente, o direito fundamental ao salário.
Este último, enquanto direito fundamental, é passível, à semelhança de outras liberdades e garantias, de ser restrito ou suspenso nos casos previstos na CRP – é o princípio da proporcionalidade vertido no art. 18º nº 2 da CRP. Ora, essas situações excepcionais a que se alude, aqui não se verificam: não se está nem em estado de sítio, nem em estado de emergência, art. 19º nº 1 da CRP. Pelo que, a inconstitucionalidade também aqui se torna evidente.
Pode-se invocar a situação de excepcionalidade económica que levou a que fosse celebrado um Standby-Agreement, um Memorando de entendimento entre Portugal e O Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia. Mas tal argumento parece improcedente.
E parece improcedente porque não se mostra que a descida dos salários – a título definitivo e não enquanto a excepcionalidade da situação persistir – seja a única medida que permitiria a contenção de custos, nomeadamente, do défice público. Outras medidas poderiam ser adoptadas, para a prossecução do mesmo objectivo, por forma a que não se ultrapassasse o intolerável desrespeito e frustração de expectativas com que os funcionários públicos legitimamente não contavam nem poderiam contar.
Mais: a diminuição salarial, dirigida apenas aos funcionários públicos, em nome de um objectivo que a todos beneficiará – diminuição gastos públicos de forma a corrigir problemas estruturais da economia portuguesa, como contrapartida pelo empréstimo a ser concedido pela Troika – corresponde, na opinião dos Professores PAULO OTERO e do advogado GARCIA PEREIRA, a uma violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP. PAULO OETERO, em Parecer solicitado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público em Novembro de 2010, defendeu que "a uns é exigido um sacrifício que, em condições de igualdade remuneratória mensal, a outros não é exigido, sem que essa diferenciação de tratamento tenha qualquer justificação aceitável, sabendo-se ainda, por outro lado, que o benefício da redução do défice orçamental a todos vai aproveitar.". Escreveu o Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa que, não podendo o Estado cortar directamente no salário dos trabalhadores de empresas privadas, poderia compensá-lo através de medidas fiscais. Não o fazendo, está-se, na sua opinião (e a que aderimos) a adoptar “uma solução legal que, envolvendo uma iníqua repartição de encargos públicos, fazendo, arbitrariamente, uns pagar para o benefício de todos, gera uma desigualdade que lesa o princípio da justiça".
Por tudo, ainda que não haja ilegalidade na adopção da medida, a mesma padece de inconstitucionalidades materiais várias, por violação do princípio da confiança, ínsito ao Estado de Direito, afectando as legítimas expectativas dos trabalhadores – art. 2º CRP , por violação do direito fundamental do direito ao salário (art. 59º nº 1 alínea a) CRP, que não pode ser restringido, por não se estar em estado de sítio nem em estado de emergência (violação do princípio da proporcionalidade: art. 18º nº 2 e 19º nº 1 CRP) , por violação do princípio da igualdade e da justiça, por só se aplicar aos trabalhadores públicos - art. 13º CRP - dado que todos os cidadãos beneficiam da finalidade que levou a República Portuguesa a celebrar um Standby-Agreement.
V – Questão residual – Imunidade parlamentar do Ministro
Da audiência e julgamento resulta que o Ministro das Obras Públicas testemunhou a favor do réu sem que tivessem levantado a sua imunidade parlamentar, facto esse que não poderia ter ocorrido, tendo em atenção que os magistrados do STA só podem   convalidar o arrolamento do Ministro como testemunha se forem autorizados  pela Assembleia da República. De acordo com interpretação das normas resulta uma aplicação analógica do Estatuto dos Deputados, no seu artigo 11°/2, ao Ministro oferecendo assim a ambos a mesma garantia processual. Isto prende-se com uma razão  óbvia que se consubstancia no seguinte: normalmente o Ministro é antes um deputado eleito em algum circulo eleitoral do país, por maioria de razão não pode ter o estatuto processual inferior ao dos Deputados, até porque têm uma responsabilidade acrescida em relação aos últimos, portanto, se a imunidade começa para os Deputados com o seu arrolamento como testemunha, impõe-se  que ela comece também nesse momento para o Ministro. É pertinente elucidar que  a nova redacção dada ao art.157º/2 CRP pela lei constitucional nº1/97, de 20 Setembro elevou a categoria de imunidade parlamentar, o que já antes se configurava na legislação ordinária como um direito dos Deputados.
Importa  salientar  também, apesar de não ser o cerne da questão, não é por acaso que o Ministro, quem diz um Ministro, diz Deputados, beneficiam duma protecção legal por não poderem ser responsabilizados penal e civilmente pelos votos e opiniões que emitam no exercício das suas funções, exceptuando os casos de abuso de poder.
Os juízes não podem  deixar proceder uma irregularidade, aliás afirmaram não ter emitido o pedido de levantamento da imunidade parlamentar do Ministro. Esse facto traduz-se numa violação das formalidades do processo, violação essa que pode dar aso a uma inconstitucionalidade por violação do art.157º/2 CRP. Acrescendo a isso a violação da norma de valor reforçado, artigo 254°/1 e 2 e ainda a violação dos artigos 11 e 21/1 e 3 do Estatuto dos Deputados, está-se a referir o Regimento da Assembleia da República que serviria de base material  para averiguar se existe condição para  proceder do pedido do levantamento da imunidade parlamentar.
Questiona-se, se os três vícios serão invocados cumulativamente ou se a inconstitucionalidade  consumirá os dois outros? Em resposta a esta questão, importa não hierarquizar os vícios, antes pelo contrário, serão cumuláveis para fundamentar a irregularidade do processo e consequentemente invalidar a prova testemunhal apresentada pelo Ministro se se concluir não oportuno corrigir esta irregularidade através da convocação da parte que arrolou a testemunha para suscitar o levantamento da imunidade parlamentar. Como é óbvio, não haveria esta possibilidade e nem sequer os juízes tiveram essa situação em conta. Ora o Ministério Público na qualidade de defensor da legalidade pretende repô-la, solicitando a invalidade das declarações prestadas em forma de prova testemunhal pelo ministro, que segundo os argumentos supra sufragados não consubstanciam valor probatório nenhum art.392º CC  e 396º CC.



Do retirado da audiência e do exposto supra, o MP requer:
 - a condenação do Estado/Administração por adopção de medida  inconstitucional - o que obriga a reparar a lesão.
 
 - dá-se nota do incumprimento do Estado para com o memorando da  

Troika, mas seria algo a ser sustentado em acusação autónoma, posterior, dado que nada releva para o autor - João Á Rasquinha, na  

medida em que dissemos não existir relação directa entre redução  

salários e suspensão novo aeroporto.
 
Cumpra-se a legalidade,



Os Procuradores-Gerais Adjuntos,
 Bernardo Barreiros –
 Ivanilde Pereira –
 Pedro Catarino –
João Gonçalves –
 Johnny Pereira –
 Ricardo Vicente –
 Sofia Assunção –

(Nota: o mesmo Parecer foi enviado para o e-mail da subturma 4, às 3h26min de hoje)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A sentença no processo administrativo



Nos termos da lei processual civil, uma sentença é um acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa. Nesta sede, interessam-nos as sentenças que se tenham pronunciado sobre o mérito da causa e não as sentenças meramente formais (por exemplo, que tenham posto termo ao processo por falta de pressupostos processuais) ou que decidam meros incidentes processuais.
Face ao princípio da atipicidade do pedido incorporado na reforma do contencioso administrativo, as sentenças proferidas por tribunais administrativos encontram-se, de certa forma, próximas às sentenças proferidas nos tribunais comuns.
Tendo em consideração o pedido formulado, poder-se-ão classificar as sentenças proferidas no contencioso administrativo como sentenças de simples apreciação (veja-se por exemplo, uma sentença de provimento de um pedido impugnatório em que exista a declaração de invalidade de um acto da Administração), constitutivas (por exemplo, uma sentença que determine a invalidade retroactiva de actos de autoridade) e condenatórias (por exemplo, uma sentença que incorpore a intimação da Administração para um comportamento ou para a prática de um acto administrativo). Existem ainda, como categoria autónoma, as sentenças de execução, que embora sejam proferidas em sede de processo executivo, têm os efeitos tradicionais do processo declarativo (existem sentenças de execução com efeitos condenatórios, declarativos, constitutivos ou substitutivos).
Com a reforma do contencioso administrativo e a possibilidade de cumulação de pedidos, a sentença administrativa tem a potencialidade de reforçar a tutela judicial efectiva dos direitos dos interessados (por exemplo, através da anulação de um acto administrativo com a condenação à prática de acto devido).
Tal desiderato não era alcançado com o modelo anterior em que a sentença anulatória se limitava a declarar a invalidade do acto impugnado, sendo o seu efeito directo e imediato a sua eliminação da ordem jurídica.
É preciso notar que não obstante todo o conteúdo da reforma do contencioso administrativo, não é obrigatório cumular o pedido de anulação de um acto administrativo com o pedido de condenação à prática do acto devido ou da reconstituição da situação hipotética actual.
Existe, assim, ao nível da tutela judicial efectiva dos direitos legalmente protegidos, o problema dos efeitos da sentença de provimento de um pedido impugnatório que não tenha sido cumulado com mais nenhum pedido. A esse nível, o novo contencioso administrativo veio consagrar que “sem prejuízo do eventual poder de praticar novo acto administrativo no respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso julgado, a anulação de um acto administrativo constitui a Administração no dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado, bem como de dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento no acto entretanto anulado, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter actuado”.
Uma decisão de um tribunal administrativo é obrigatória para todas as entidades públicas e privadas, prevalecendo a mesma sobre qualquer decisão de uma autoridade administrativa.
Por outro lado, tal prevalência implica a nulidade de qualquer acto administrativo que desrespeite um decisão judicial e faz incorrer os seus autores em responsabilidade civil, criminal e disciplinar.
A lei do processo administrativo tem como normativo a obrigatoriedade das decisões dos tribunais administrativos, daí resultando, como consequência lógica, o dever de cumprimento espontâneo pela Administração, dentro de um determinado prazo, das sentenças proferidas pelos tribunais, salvo ocorrência de causa legítima de inexecução.
O processo executivo visa atingir e obter, pela via judicial, as providências materiais que concretizem no plano dos factos, aquilo que foi juridicamente determinado pelo tribunal em sede de processo declarativo.
Em função do objecto, existem três tipos de processos de execução:
a) execução para prestação de factos ou de coisas;
b) execução para pagamento de quantia certa;

c) execução de sentenças de anulação de actos administrativos.

A inexecução ilícita de sentenças proferidas por tribunais administrativos por parte da Administração envolve: responsabilidade civil, nos termos da lei geral, quer da Administração quer das pessoas que nela desempenhem funções e responsabilidade disciplinar dessas mesmas pessoas.
A inexecução ilícita poderá ainda acarretar a pena de desobediência, sem prejuízo de outro procedimento especialmente previsto na lei, quando, tendo a Administração sido notificada para o efeito, o órgão administrativo competente: a) manifeste a inequívoca intenção de não executar a sentença, sem que para tal invoque a existência de uma causa legítima de inexecução e b) não execute a sentença nos moldes estabelecidos na mesma ou nos moldes em que o tribunal venha a definir em sede de processo de execução.
Tem sido adoptado, no âmbito da jurisprudência administrativa, o princípio do duplo grau de jurisdição de mérito, o qual assegura às partes, com raras excepções, o direito ao recurso contra decisões jurisdicionais, ainda que tenham sido proferidas por tribunais superiores em 1.º grau de jurisdição.
Existem, ainda, casos em que o contencioso administrativo português admite, excepcionalmente, um duplo grau de recurso.
A legitimidade para recorrer de uma decisão é atribuída, como é natural, a quem nela tenha ficado vencido.
O Ministério Público tem legitimidade para a interposição de recurso sempre que esteja em causa a defesa da legalidade.
Além disso, o Ministério Público é notificado para intervir no processo, emitindo parecer sobre o mérito dos recursos das partes, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e de interesses públicos especialmente relevantes ou valores comunitários constitucionalmente protegidos.
Um aspecto fundamental que passa a revestir uma grande importância na identificação dos recursos que podem ser interpostos contra decisões de tribunais administrativos, prende-se com as alçadas.
Com efeito, as decisões sobre o mérito da causa que os TAC, TCA e o STA profiram em 1.º grau de jurisdição só são passíveis de recurso jurisdicional se o valor da causa for superior ao valor da alçada dos TAC (a alçada dos TCA e do STA quando decidem em 1.º grau de jurisdição é igual à alçada do TAC) .
Em todo o caso, é sempre admissível o recurso, independentemente do valor da causa, nos mesmos termos em que isso é admissível de acordo com a lei processual civil e ainda quando se trate de recorrer de decisões de improcedência de pedidos de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, de decisões proferidas em matéria sancionatória ou contra jurisprudência uniformizada pelo STA e de decisões que ponham termo ao processo sem se pronunciarem sobre o mérito da causa.
Salvo em processos urgentes, em que o prazo de recurso é de 15 dias e todos os prazos reduzidos a metade, o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar da notificação da decisão recorrida, devendo o mesmo ser interposto mediante requerimento com alegações, nas quais se enunciam os vícios da sentença impugnada. Em observância do princípio do contraditório, os recorridos são notificados para alegarem.
Bibliografia:
Mário Aroso Almeida – “Anulação dos actos administrativos e relações jurídicas emergentes”
Sérvulo Correia, Bernardo Ayala, Rui Medeiros – “Estudos de Direito Processual Administrativo”

Direitos, liberdades e garantias: entre a tutela prevista no art. 109º CPTA e aquela consagrada no art. 131º CPTA

O mecanismo previsto no art. 131º CPTA corresponde a um decretamento, a titulo provisório, de uma medida cautelar, destinada a evitar o periculum in mora da própria medida cautelar, quando os trâmites a observar num processo cautelar comprometam o que o próprio visa assegurar. Vem expressamente prevista a possibilidade de recurso a esta figura em situações de necessidade de tutela urgente de direitos fundamentais. Contudo, ressalva-se o facto de não nos parecer que a lei reservou este instrumento à tutela de direitos, liberdades e garantias, mas igualmente para casos de “especial urgência”, não se remetendo esta especial urgência para casos de direitos fundamentais, mas sim para sim para a generalidade de casos urgentes que admitam a possibilidade de decretamento provisório de providencia, em especial, e de medida cautelar em geral. Assim sendo, o decretamento provisório de providência prevista no art. 13º CPTA vem dar concretização ao imperativo constitucional consagrado no art. 20º/5 CRP, mas, como acima se defendeu, não só. [1]


Figura, essa sim, destinada a tutelar especificamente direitos, liberdades e garantias, vem prevista na qualidade de tutela urgente, nos art. 109º ss CPTA. A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias aparece consagrada em moldes tais que impõe clarificação de modo a que se retire um conteúdo útil desta nova figura emergente da Reforma do Contencioso Administrativo de 2002/2004. Definido o seu âmbito de aplicação, cabe esclarecer se efectivamente estamos perante uma situação de subsidiariedade da intimação face ao decretamento provisório de providência acima abordado. Não obstante as semelhanças que podemos encontrar entre as duas figuras, [ora veja-se o facto de o CPTA, no seu art. 36º, reconduzir as duas formas de tutela a formas de processo urgente, e ao facto de razões de urgência possibilitarem obter decisão no prazo de 48h (art. 111º/1 e art. 131º/1 CPTA), tornando-os em mecanismos “urgentíssimos”, se assim os pudermos chamar, de entre os processos urgentes.] a doutrina procurar delimitar as fronteiras entre ambas com recurso à decisão de fundo que resultará de cada um dos processos. Assim, nas situações que requeiram uma decisão de mérito que defina, a título definitivo, o litígio em causa, recorrer-se-á à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias enquanto, nos casos em que tal decisão definitiva não seja necessária enquanto decisão urgente, utilizar-se-á uma medida cautelar, estendendo assim a referência que é feita ao decretamento provisório a todo o regime dos processos cautelares. [2] Na realidade, fazendo uma interpretação literal da norma do art. 109º/1 CPTA e tentando retirar algum sentido útil da letra da lei, tendemos a concordar com TIAGO ANTUNES quando admite que o que a lei dá relevância não será tanto a natureza definitiva ou provisória da decisão, mas sim a urgência dos litígios que requerem uma célere protecção de modo a que, seja uma decisão definitiva ou provisória, sejam acautelados os seus direitos fundamentais de eventuais danos. Nestes termos, fará algum sentido limitar a necessidade de observar a possibilidade de recurso ao art. 131º antes de requerer a tutela por via do art. 109º e ss, dado o carácter “urgentíssimo” de ambas as formas de tutela, como acima aludimos. [3] Consideramos que este entendimento corresponde à letra da lei, mas não ao espírito do legislador quando criou a figura da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. Assim corroboramos a posição doutrinária acima exposta de modo a dar efeito útil ao regime da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. [4]


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[1] concordamos assim com a posição defendida por TIAGO ANTUNES quando afirma que o que se pretendeu acautelar em primeira linha foram situações de urgência agravada e não tutela de direitos, liberdades e garantia. Mais desenvolvimentos em TIAGO ANTUNES, O «Triângulo das Bermudas» no novo contencioso administrativo, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano: no centenário do seu nascimento, VOL II, Lisboa, 2006, p. 715; retiramos das palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA a concordância neste entendimento do decretamento provisório quando refere que o “decretamento, a título provisório, de providencias cautelares destinadas a tutelar direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam ser exercidas em tempo útil ou, em todo o caso, dar resposta a situações de especial urgência. (sublinhado nosso); vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª ed. rev. e actualizada, Lisboa,  Almedina, 2005. - 356 p. 310].

[2] vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo…ob. cit. p. 311

[3]  desenvolvendo este entendimento, TIAGO ANTUNES, O “Triângulo….ob. cit. p. 723

[4] também assim o entende TIAGO ANTUNES, O “Triângulo….ob. cit. p. 725

Acção Administrativa Especial sobre Normas

1. Onde se encontra

Secção III do capítulo II do título III do CPTA, ou seja, dos artigos 72º a 77º do CPTA mais 268º/5 CRP.

1.1. História
Historicamente, existiu sempre uma certa resistência à admissibilidade da impugnação judicial directa de normas administrativas, nomeadamente regulamentos, dado estarem em causa regras gerais e abstractas (o que dificilmente lesaria directamente a esfera do particular) e, primordialmente, os provenientes do Governo, dado o tradicional respeito pela sua autoridade normativa, que, obviamente, são também expressão de opções políticas ou semi-políticas.
Com o reforço de ideias como a de legalidade administrativa e de protecção dos administrados, associadas à verificação da lesividade efectiva de muitos actos normativos, essa resistência começou a desvanecer e balançou entre vários regimes consoante o tipo, a autoria e efeitos dos regulamentos.
Com a revisão de 1997, a CRP consagrou este direito de impugnação judicial directa face a:
- Normas administrativas
- Com eficácia externa
- Quando estas sejam lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, no âmbito da garantia da respectiva protecção judicial efectiva.

1.2. Objecto da impugnação

Presente no artigo 72º/1 CPTA, ou seja, pode pedir-se a declaração de ilegalidade das normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, com fundamento em vícios próprios (ilegalidade própria) ou decorrentes da invalidade de actos praticados no âmbito do procedimento de aprovação (invalidade derivada).
O conceito de norma impugnável aqui é entendida num sentido amplo, incluindo todas as disposições de direito administrativo com carácter geral e abstracto que visam a produção de efeitos permanentes numa relação intersubjectiva, nomeadamente, planos, estatutos, regimentos, etc…

1.3. Pedidos

Existem dois:
a) Pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral que nunca pode fundar-se em inconstitucionalidade directa (72º/2 que remete para o 281º/1 CRP), pois este pedido pressupõe um conhecimento submetido à jurisdição administrativa.
b) Pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto

1.4. Só se pode invocar a ilegalidade da norma a título principal?

Não, nada obsta a que a ilegalidade da norma seja invocada no processo de impugnação de actos que as tenham aplicado, para efeitos de ser obtida a sua anulação.

1.5. Legitimidade

a) Qualquer pessoa que alegue ser prejudicada pela aplicação da norma ou que possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo (basta que a ameaça seja real). No entanto, aqui parece que a lei, além dos particulares, se estende a pessoas colectivas públicas, quando estejam em causa interesses que lhes cumpra defender.
b)  Ministério Público (na defesa da legalidade)
c) Actores populares no âmbito dos valores do artigo 9º CPTA. Aqui assume-se que só se reporta a pedidos de declaração de ilegalidade no caso concreto de normas que produzam efeitos imediatos – Lei nº4-A/2003

O regime varia consoante o tipo de pedido (73º/1, 3,4 CPTA):

Com força obrigatória geral

i) Particulares – só podem efectuar o pedido após a norma ter sido desaplicada em três casos concretos, quer por via principal ou incidental. Podem, no entanto, efectuar o pedido no caso concreto, ainda que três vezes desaplicada.
ii) Ministério Público e acção popular - não lhes é exigida a desaplicação em três casos.
O Ministério Público, se tiver conhecimento de desaplicação em três casos, tem o dever de propor a acção (73º/4) para evitar que normas desaplicadas se mantenham em vigor muito tempo sem fiscalização da sua legalidade em abstracto.

Com efeitos restritos no caso concreto

A desaplicação da norma pode ser pedida pelo lesado e pelos titulares da acção popular quando a norma produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação, não sendo necessária a prévia desaplicação em três casos (73º/2)
Aqui admite-se a possibilidade de pedido de declaração com fundamento na inconstitucionalidade da norma. Ex: lesão de direitos fundamentais
No entanto, a desaplicação da norma só deve fundamentar-se na lesão directa de direitos ou interesses legalmente protegidos (73º/2 com o concretização do 28º/5 CRP) ou dos valores comunitários susceptíveis de acção popular (o juiz não está limitado pela causa de pedir – 75º).

Nota: o CPTA encara a declaração com força obrigatória geral como uma questão de predominante interesse público.

1.6. Prazos

Segundo o 74º CPTA pode ser pedida a todo o tempo (qualquer um dos tipos de declaração) enquanto a norma estiver em vigor, sem prejuízo da necessidade de existir desaplicação em três casos concretos quando exigida.

1.7. Pode haver cumulação de pedidos?

Sim, segundo o artigo 4º/1 e 2 a) do CPTA.
Ex: declaração de ilegalidade da norma com anulação ou declaração de nulidade dos actos administrativos que a tenham aplicado e com o pedido de condenação da Administração ao restabelecimento da situação actual hipotética.

1.8. Características das normas

i) Valor superior ao da alçada dos TCA – 34º/1 e 2 CPTA
ii) São julgadas em 1ª instância com uma formação de três juízes (150º e 151º CPTA) e as sentenças são susceptíveis de recurso per saltum ou excepcional de revista para o STA.
iii)Até aqui ainda não estava consagrada e o TC não entendia assim, mas agora pode haver suspensão cautelar de eficácia das normas conforme os efeitos do caso ou gerais, do pedido principal e dos requisitos de admissibilidade do pedido dependentes do autor – 130º (alterado pela Lei nº 4-A/2003)

1.9. Efeitos

A lei só se refere expressamente à declaração com força obrigatória geral – 76º
Antes: adoptou-se a solução ex nunc, ou seja, o tribunal, por razões de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, podia reportar os efeitos invalidatórios a momento anterior (11º ETAF antigo)
Agora: ex tunc, determinando a repristinação das normas revogadas, sem prejuízo do tribunal determinar que os efeitos se produzam apenas para o futuro por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de especial relevo.
É mais favorável aos particulares lesados que conseguem obter a eliminação dos efeitos não consolidados às normas.
Em caso de ilegalidade superveniente da norma, os efeitos invalidatórios só se produzem a partir da entrada em vigor da norma legal ou constitucional violada.

No caso concreto, embora não consagrado expressamente, os efeitos operam ex tunc e com alcance repristinatório, embora se produzam apenas face àquele caso, mas tal não implica apenas eficácia interpartes (alteração do 73º/2 pelo 2º da Lei nº4-A/2003)
Aqui o juiz não terá grande proveito em limitar os efeitos da declaração, pois os fundamentos legais dessa limitação reportam-se a efeitos gerais, o que é ainda mais favorável para o requerente.

2. O artigo 77º CPA prevê uma modalidade diferente chamada “declaração de ilegalidade por omissão”. O que é isso?

Prevê-se a verificação de uma omissão de normas, cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação.
Inspirou-se na fiscalização da constitucionalidade por omissão, sendo que na concretização das condições legais se recorre também à jurisprudência constitucional.
Terá de tratar-se da omissão de regulamentos (necessários, não podendo ser globalmente revogados, a não ser por substituição) que se prove serem necessários à execução de preceitos constitucionais das leis em vigor, nos termos referidos no 119º/1 CPA.

2.1. Legitimidade

a) Acção popular e pública – 9º CPA
b) Qualquer pessoa que alegue um prejuízo directo e actual resultante da situação de omissão.

2.2. Efeitos

i) Prazo para emanação da norma não pode ser inferior a 6 meses após conhecimento dado pelo tribunal. Aqui a lei devia adoptar a expressão “prazo razoável” sem fixar limites quantitativos, segundo Vieira de Andrade.
ii) Apesar da formulação legal apontar para uma pronúncia declarativa, assume uma perspectiva condenatória porque faz-se mais do que recomendar ou comunicar, embora não esteja formulada com a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias e falte, face ao título reservado ao processo executivo, a previsão normativa dos termos da respectiva execução.
Os poderes de pronúncia do Tribunal no âmbito
da acção de condenação no acto legalmente devido

            Os arts. 66º a 71º do CPTA regulam a acção de condenação no acto devido, estando os poderes de pronúncia do Tribunal previstos no art. 71º.
            Este pedido tem como objecto a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo, o «acto devido», que, na perspectiva do autor, tenha sido ilegalmente omitido ou recusado, ou que tenha sido praticado mas não satisfaça ou não satisfaça integralmente a sua pretensão.
            Na Orientação para a Reforma do Ministério da Justiça dizia-se que o Tribunal deve poder «determinar qual o conteúdo do acto no caso de poderes vinculados ou quando da análise do caso concreto e no âmbito de um poder legalmente considerado discricionário resulte da apreciação do caso concreto apenas uma solução legalmente viável (…); definir o conteúdo dos aspectos vinculados do acto a adoptar no âmbito de um poder discricionário.»
            A Exposição de Motivos, por sua vez, determinava que perante uma situação de recusa pela Administração do acto solicitado pelo particular, «o tribunal não deve limitar-se a verificar se a recusa foi ilegal mas deve pronunciar-se sobre o bem fundado da pretensão do interessado, na exacta medida em que tal seja possível, sem invadir o espaço próprio da discricionariedade administrativa» e, «sempre que dê razão ao autor, o tribunal não anule ou declare nula a recusa, mas imponha a pratica de um acto administrativo, determinando o seu conteúdo ou, no caso de não o poder fazer, explicitando as vinculações a observar pela Administração na sua emissão. A condenação proferida tem, só por si, o alcance de eliminar da ordem jurídica o indeferimento porventura referido».
Vejamos quais os limites decorrentes da separação de poderes, e a sua relação com a decisão administrativa.
            No art. 3º, nº 1 CPTA determina-se que os Tribunais não podem apreciar a conveniência ou oportunidade da actuação da Administração. Assim, o Tribunal só poderá agir no espaço de vinculação da Administração, se a solução resultar da conjugação da normas e princípios vigentes, cabendo nos poderes do julgador a explicitação de tais vinculações, determinando, assim, o acto administrativo a praticar. Este é o limite relativamente às sentenças proferidas no âmbito da acção de condenação no acto legalmente devido que se prende com o princípio de separação de poderes, muito discutido pela doutrina.
            Tal como refere PAULA BARBOSA, este princípio não impede a condenação da Administração na prática do acto legalmente devido. Trata-se, antes, de determinar o que a lei impõe, não contendendo com a área de discricionariedade administrativa. O tribunal não pode tomar decisões pela Administração, tendo esta natureza discricionária, mas poderá determinar as áreas de vinculação dessa vinculação dessa decisão.
            RUI MEDEIROS considera que este princípio «visa garantir uma margem de liberdade da Administração, quer face aos tribunais, quer face ao próprio legislador. Em relação ao Tribunal, só no âmbito da discricionariedade é que juiz não pode intervir, nem sequer para anular o acto administrativo. Pelo contrário, no plano da legalidade, não há qualquer obstáculo a que o juiz condene a Administração. Se a discricionariedade estiver em causa, o juiz não pode condenar a Administração no que há-de fazer, mas apenas no quadro da sua actuação vinculada à lei».
            Mas a discricionariedade também não significa arbítrio, na medida em que a decisão deve respeitar o fim que a actuação da Administração deve prosseguir, o interesse público, para além dos demais princípios gerais de Direito, como a igualdade e proporcionalidade.
            PAULA BARBOSA defende que o Tribunal pode estabelecer uma censura jurídica à actuação da Administração, quando esta, no exercício de tais poderes, viole a legalidade, sem prejuízo do facto de o Tribunal não poder ingerir-se na esfera própria da Administração, correspondente ao exercício dos seus poderes discricionários, em obediência ao princípio de separação e interdependência de poderes.
            MÁRIO TORRES refere que o tribunal deve poder avaliar da justiça da decisão administrativa, mesmo sendo esta discricionária.
            VIEIRA DE ANDRADE caracterizava jurisdição administrativa como uma «jurisdição obrigatória e plena, no sentido de que os tribunais administrativos se encontram imperativamente consagrados na Constituição, constituindo uma ordem judicial paralela à dos tribunais comuns, e dispõem de poderes jurisdicionais mais amplos (de condenação e injunção), que têm apenas como limites funcionais o núcleo do juízo discricionário e os actos internos da Administração». E ainda « obriga hoje a que o legislador reconheça ao juiz administrativo todos os poderes incluindo obviamente os de condenação e injunção, sempre que esteja em causa a legalidade ou juridicidade da actuação administrativa, ou seja, os limites funcionais impostos pelo princípio de divisão de poderes reduzem-se à sua dimensão própria, proibindo ao juiz apenas que exerça a função administrativa, isto é, que se substitua à Administração no núcleo do juízo discricionário».
            COLAÇO ANTUNES refere que o tribunal deve funcionar «como garantia de juridicidade do agir administrativo na prossecução do interesse público».
            MARCELO REBELO DE SOUSA entende que «face a uma aérea vinculada, o tribunal poderá determinar o conteúdo do acto administrativo; já perante matéria discricionária, aquele não poderá substituir-se à Administração, mas unicamente reconhecer o direito subjectivo em causa».
            JOÃO CAUPERS refere que «deixa de ser possível entender que o juiz administrativo não pode impor à Administração a adopção de comportamentos, por ser violação do princípio de separação de poderes. No entanto, esta acção de condenação não é uma habilitação geral para o tribunal se substituir à Administração no exercício da função administrativa, até porque o julgador não detém nem os meios, nem os conhecimentos técnicos, nem as informações necessárias para uma boa administração».

            Mas afinal, que tipo de pronúncia está em causa na acção de condenação à pratica do acto legalmente devido? Declarativa, i. e., declarando que a Administração está obrigada a agir mas não a condenando a fazê-lo (reconhecimento da obrigação); ou condenatória, condenando a Administração a agir; ou substitutiva, agindo o Tribunal em vez da Administração?
No ordenamento jurídico português, deve o Tribunal começar por avaliar, numa primeira fase, qual o tipo de solução em causa, se vinculada, se discricionária. A esta deverá seguir-se a reflexão sobre o caso material concreto (o que pode determinar que aquilo que era, à partida, discricionário, já não o é no caso concreto). A primeira condiciona, assim, a segunda fase, pois determina a amplitude de poderes de pronúncia do tribunal. O tipo de pronúncia a emitir pelo julgador dependerá do tipo de dados normativos e circunstâncias aplicáveis ao caso concreto. Assim podemos ter:

- Sentença condenatória simples: o Tribunal limitar-se-á a condenar a Administração a praticar um qualquer acto administrativo, sem determinação do seu conteúdo, como resulta do confronto entre o nº1 e 2 do art. 71º. Aplicar-se-á em casos de inércia ou omissão da Administração, quando esta não dá resposta à pretensão que lhe foi dirigida, quando não haja um substrato material de actuação da Administração que possa ser objecto de análise por parte do julgador; e em caso de recusa de apreciação do requerimento dirigido pelo particular à Administração, a situação da Administração emitir uma «recusa liminar» (invocando questões prévias que a impedem de analisar o mérito da pretensão). Não há, nestes dois casos, uma avaliação material do caso concreto pela Administração, ou seja, qualquer valoração administrativa feita. No entanto, o julgador deverá procurar produzir, sempre que possível, uma decisão de mérito, não podendo remeter meramente o assunto para a Administração (art. 71º, nº 1, in fine). O Tribunal acabará, assim, por avaliar da legalidade da inércia ou omissão, e sendo o caso, condenar a Administração a agir, a prática do acto devido, sem determinação do tipo de acto concreto em causa.
- Sentença-marco ou sentença indicativa: são as sentenças condenatórias na prática de um acto com determinados parâmetros, potencialmente aplicáveis quando estejam em causa áreas de actuação por natureza discricionárias, não sendo possível operar a redução da discricionariedade a zero. (art. 71º, nº 2 in fine). São fixados, pelo julgador, critérios quanto aos aspectos vinculados do acto, determinando o que é legal e o que não o é, ficando, em consequência, excluídas certas formas de actuação da Administração, não podendo esta repetir a ilegalidade cometida. O Tribunal condena, assim, a Administração na prática do acto a agir, mas não num determinado, indicando possíveis áreas de vinculação ou limites à discricionariedade.
- Sentença cominatória plena: sentença que condena a Administração na prática de um acto administrativo com um conteúdo definido, num acto determinado. Tal acontece quando estejamos perante actos administrativos de natureza vinculada quanto ao seu conteúdo e verificação, ou actos que, sendo discricionários, vêem, no caso concreto, reduzida a zero essa discricionariedade, por se concluir que foi ultrapassada essa discricionariedade, só sendo possível, afinal, uma única solução, acto administrativo. A redução da discricionariedade a zero acontecerá sempre que várias soluções sejam abstractamente possíveis, mas face às circunstâncias de facto do caso concreto, só uma corresponde ao acto devido. Tal resulta da conjugação do art. 71º, nº 1 in fine com o seu nº 2, a contrario.

Bibliografia
. Almeida, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra.
. Amaral, Diogo Freitas; Almeida, Mário Aroso de, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, 2002
. Andrade, Vieira de, A justiça administrativa, 2009
. Barbosa, Paula, Acção de condenação no acto administrativo legalmente devido, AAFDL, 2007
. Caupers, João, Imposições à Administração Pública, CJA, 1999


Filipa Correia Henriques

nº 17275